Tatiana Salem Levy narra abuso sexual por padrasto em romance autobiográfico

LISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS) – O novo romance de Tatiana Salem Levy, “Melhor Não Contar”, é autobiográfico e narra uma história incômoda.

Na cena inicial, a protagonista, uma menina de dez anos de idade, sente-se constrangida quando seu padrasto a desenha tomando sol sem a parte de cima do biquíni, na piscina de uma casa de praia. Mais tarde, aos 17 anos, ela é vítima de assédio por parte do mesmo padrasto, já sexagenário —e esse assédio se torna recorrente.

“Minha ideia inicial era escrever um livro pequenino sobre os diários de minha mãe, que ela me deu quando eu era adolescente”, diz a brasileira durante entrevista em Lisboa, onde mora há 11 anos. “Só que fui revisitando a minha relação com ela, que morreu há 25 anos, e surgiu a cena inicial do romance, uma cena que me persegue.”

Salem Levy nunca relatou os assédios a sua mãe —a escritora e jornalista Helena Salem, morta em 1999 aos 51 anos, primeira mulher brasileira a atuar como correspondente de guerra. Ela manteve um relacionamento de vários anos com Nelson Pereira dos Santos, cineasta morto em 2018 e um dos principais diretores do movimento do cinema novo, que era casado com outra mulher.

No livro, “Helena” e “Tatiana” são identificadas pelos nomes reais, mas o “padrasto” nunca é identificado. Qual o motivo dessa escolha por parte da autora?

“No romance, e isto é um romance, eu explico o que entendo por exposição, o que entendo por literatura, e está claro para mim que não se trata de um livro de denúncia, não é um livro como os relatos do ‘Cuéntalo’, do ‘MeToo’ ou do ‘Meu primeiro assédio’”, diz Salem Levy, em referência a hashtags feministas que se popularizaram na internet. “Não escrevi este livro para condenar ninguém. Nem para perdoar.”

“Melhor Não Contar” se segue a “Vista Chinesa”, romance também baseado numa história real —de uma amiga da autora, vítima de estupro. A diretora de televisão Joana Jabace, que inspirou a personagem principal, fez questão que seu nome aparecesse naquele livro.

Na ocasião, a escritora questionou. “Tem certeza que quer fazer isso? Seus filhos, que são pequenos, vão saber. Você não vai ter a opção de não contar.” Jabace respondeu: “Não, eu vou contar, eu quero que eles saibam”.

Para Salem Levy, “Melhor Não Contar” só existe porque existiu “Vista Chinesa”, romance indicado a vários prêmios, como o Jabuti. “No meu caso, talvez também seja uma decisão minha de contar para os meus filhos, não é? Pronto, está escrito, então não tem mais a possibilidade de não contar”, diz. “Eu contei a história de uma outra mulher, agora vou contar a minha história.”

Uma das cenas mais fortes do livro é o reencontro da protagonista com o padrasto, muitos anos depois dos episódios narrados nos primeiros capítulos. Num café em Paris, onde a escritora morou, ele justifica o assédio: diz que estava apaixonado.

“O enamoramento por pessoas muito mais jovens faz parte do ser humano e vai continuar existindo”, diz a autora. “A questão é o que você pode se dar o direito de fazer, esse é o ponto central.”

Professora e pesquisadora universitária, Salem Levy entende que em romances como “Lolita”, do russo Vladimir Nabokov, histórias de assédio e abuso são narradas como se fossem histórias de amor.

“Isso ajuda a criar um tipo de contexto: ‘Olha, eu não sou mau, fui tomado por essa força que está fora de mim’. É uma desresponsabilização total. Isso não vale quando há uma pessoa de 60 anos e outra de 17 anos. Aos 60 anos a gente tem que saber o que é responsabilidade, o que é certo e o que é errado, o que é violento e o que não é violento.”

No livro, Salem Levy mergulha no espírito das últimas décadas do século passado. “Eu fui criada no meio de um monte de gente de esquerda, gente que foi torturada, presa, que perdeu gente querida, assassinada pela ditadura”, afirma. “Só que essas questões identitárias, de gênero e raça, não foram incorporadas nessa luta.”

“Eu fui criada como se as mulheres já tivessem conquistado o seu espaço, até porque eu via isso dentro de casa”, diz Salem Levy. “Minha mãe trabalhava mais que meu pai, aquela coisa de jornalista, fazer plantão, voltar tarde da noite. Mas naquele momento não se pensava muito nessas questões de abuso. E olha que minha mãe foi uma mulher que, quando eu estava com dez anos, já havia sido estuprada.” O episódio é contado no livro.

Há toda uma discussão em “Melhor Não Contar” sobre a escrita de diários, tarefa que na literatura já foi primordialmente masculina —como narrativa de viagens ou a exaltação de feitos— e depois se tornou algo mais comum entre mulheres.

“Eu nunca fui boa em escrever diários, mas tem uma coisa curiosa. Eu me lembro de, nesse dia da piscina, estar sentada na escrivaninha escrevendo, mas não sobre o que eu tinha vivido, e sim sobre outra coisa”, diz Salem Levy.

“Ao mentir para o meu diário, eu estava mentindo para quem? Talvez estivesse tentando mentir para a Tatiana de dez anos, tentando fazer com que aquilo não tivesse acontecido, porque na verdade quando você narra você torna aquilo real. E não tem mais como fugir daquela realidade.”

MELHOR NÃO CONTAR

Preço R$ 69,90 (224 págs.); R$ 49,90 (ebook)Autoria Tatiana Salem LevyEditora Todavia

JOÃO GABRIEL DE LIMA / Folhapress

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