TCHERNÓBIL, UCRÂNIA (FOLHAPRESS) – A explosão de um reator na usina atômica de Tchernóbil, na atual Ucrânia, em 1986, entrou para a história como o maior acidente nuclear do mundo –estima-se que a radiação liberada na atmosfera naquele 26 de abril tenha sido 400 vezes superior à emitida pela bomba atômica de Hiroshima.
Em 24 de fevereiro de 2022, quando teve início a invasão em larga escala da Ucrânia pela Rússia, o local voltou a servir de cenário para um pesadelo nuclear. A partir de Belarus, os russos adentraram a chamada zona de exclusão de Tchernóbil, uma área de 2.600 km2 caracterizada por altos níveis de contaminação radioativa em cujo centro está a usina. Veículos militares, incluindo um tanque, chegaram ao edifício da administração principal da usina por volta das 14h da tarde. Às 17h, ela tinha sido tomada.
A ocupação durou pouco mais de um mês. Ao longo desse período, os cerca de 200 funcionários que trabalhavam no local durante a invasão russa continuaram lá em vez de pegarem o trem de volta para a cidade de Slavutitch, onde moram, após seus turnos de 12 horas.
Além deles, quatro mochileiros ucranianos que tinham planejado passar a noite em Pripiat, um vilarejo construído para servir de dormitório para os trabalhadores da planta nos anos 1970 e abandonado depois da explosão, procuraram abrigo na sede administrativa e lá permaneceram até 20 de março.
E 169 dos integrantes da Guarda Nacional da Ucrânia que defendiam o local foram capturados pelos russos. Destes, 103 continuavam presos até esta sexta-feira (31), quando 14 deles foram liberados, reduzindo o número para 89.
Foi nesta data que a reportagemda Folha de S.Paulo, em conjunto com um grupo de jornalistas da América Latina, visitou a planta, localizada a cerca de duas horas de carro da capital, Kiev.
Quando se entra na zona de exclusão, é preciso apresentar passaportes e autorizações de imprensa. Não por causa dos perigos da exposição à radiação, segundo afirmam os administradores, mas em razão da proximidade com Belarus, país aliado de Vladimir Putin cuja fronteira fica a menos de 50 km dali.
Depois, ao sair –um processo que inclui medir o próprio nível de energia radioativa em uma espécie de balança que remete aos tempos soviéticos–, é necessário submeter as fotografias tiradas na zona a oficiais ucranianos para que eles se certifiquem de que nenhuma delas revela locais militares estratégicos.
Liubov Zavodenko, 52, foi uma das civis presas na zona de exclusão depois do cerco de Moscou. Ela conta que mora com o marido perto de um dos locais onde os russos estabeleceram um posto militar. A cada uma das três trocas de turno diários, diz, os soldados vinham até a sua casa, colocavam o casal de joelhos e vasculham todo o imóvel em busca de nacionalistas ucranianos.
A maior preocupação de todos era, no entanto, com a própria planta nuclear. Zavodenko, que nasceu perto de Tchernóbil e era criança na época da explosão do reator, afirma que se revezava com um colega de trabalho para checar o estado do laboratório por cuja limpeza é responsável nos primeiros dias da ocupação, antes que impedissem a entrada deles no local.
“Foi muito estressante”, diz Oleksii Chelestii, supervisor do departamento elétrico de Tchernóbil. Ele tinha acabado de encerrar o turno quando os russos tomaram a planta. Em vez de ir para a casa, seguiu na usina por mais 25 dias.
Mesmo assim, afirma que teve sorte em comparação com alguns de seus colegas. “Quase não via os russos, só uma vez por dia, quando ia ao refeitório”, diz, acrescentando que conversou por telefone com representantes da agência nuclear russa algumas vezes, mas o deixaram em paz depois que ele se recusou a colaborar.
As tropas começaram a se retirar em março –mas não sem consequências. Embora os reatores da usina não gerem eletricidade há décadas e a planta hoje seja utilizada para armazenar resíduos nucleares, Chelestii diz que, além de destruir instalações e roubar equipamentos, os russos não cumpriam os protocolos sanitários durante a ocupação.
Isso obrigava os trabalhadores locais a redobrar seus esforços para retirar eventuais resíduos das zonas ditas limpas. O funcionário afirma que os danos são estimados em US$ 40 milhões, ou R$ 210 milhões.
Além disso, os integrantes do Exército russo ignoravam as chamadas “zonas vermelhas”, e ao circularem nelas com veículos pesados, levantavam muita poeira radioativa. Alguns dos sensores da zona de exclusão registraram entre duas e oito vezes mais radioatividade ao longo do período da ocupação.
A maior preocupação nuclear da Ucrânia hoje não é com Tchernóbil, no entanto, mas com a usina de Zaporíjia –localizada no sul do território, a maior planta atômica europeia é controlada pelos russos desde o início do conflito, mais de dois anos atrás.
Chelestii diz que a planta funciona um terço do número dos funcionários ideal, e reparos têm sido ignorados porque não pessoal para realizá-los. “Os empregados estão sob grande tensão e isso é muito perigoso, porque aumenta a chance de erros humanos.”
CLARA BALBI / Folhapress