SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Na história do teatro, 2023 será lembrado como o ano da morte de José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, um dos fundadores do Teatro Oficina e a mente mais anárquica da arte no Brasil, e de outros grandes nomes dos tablados brasileiros, como o diretor Aderbal Freire-Filho.
A primeira foi uma perda embalada pela tragédia. Na madrugada de 4 de julho, um incêndio consumiu o apartamento onde Zé Celso, de 86 anos, morava, no Paraíso, na região central de São Paulo, com o marido, o ator Marcelo Drummond, e outros dois atores da companhia, Ricardo Bittencourt e Victor Rosa.
O fogo foi causado por uma falha no aquecedor elétrico. Enquanto Zé Celso tentava sobreviver no Hospital das Clínicas, os demais integrantes do Oficina foram encaminhados para o Hospital São Paulo. Lá, Drummond e Bittencourt descobriram estar infectados pela Covid-19. Dois dias depois, Zé Celso morreu, fato que desencadeou uma extensa celebração por sua vida e obra.
A alegria, preconizada pelo modernista Oswald de Andrade, substituiu a tristeza durante o velório. Uma multidão lotou a passarela que corta o edifício, projetado por Lina Bo Bardi em 1991, entoando canções do repertório da companhia. Em sua despedida, o dramaturgo ganhou do público um ritual dionisíaco, o que correspondia ao seu pensamento teatral.
Ao lado de Renato Borghi, Etty Fraser, Amir Haddad e Ronaldo Daniel, Zé Celso desafiou a ditadura militar, nos anos 1960, propondo um teatro adequado à realidade brasileira. Para tanto, ele traduziu aos palcos a linguagem tropicalista, alicerçada na antropofagia, cunhada pelo modernismo.
Dali em diante, o Oficina deglutiu a influência estrangeira, à luz da cultura nacional. Da antropofagia, nasceu “O Rei da Vela”, texto de Oswald de Andrade encenado na década de 1970, que criticou a subserviência do regime militar em relação aos países desenvolvidos. Também se tornaram históricas as peças “Os Pequenos Burgueses”, do russo Máximo Gorki, e “Galileu Galilei”, inspirado na teoria do alemão Bertold Brecht.
A morte de Zé Celso provocou um trauma na classe teatral brasileira. Sobretudo para Rosa, que viveu a tragédia de perto, tentando salvar Zé Celso. “Os pés dele estavam com fogo. Queimei as minhas mãos tentando agarrar o corpo dele. Ele tirou as mãos do andador e fomos ao chão, na tentativa de escapar da fumaça. Zé estava lúcido e consciente durante todo esse momento”, disse o ator à Folha de S.Paulo, na ocasião.
O Oficina segue. Drummond assumiu a presidência da companhia, que voltou no final do ano aos trabalhos, com a peça “O Jogo do Poder”, uma colagem de 36 textos de William Shakespeare.
Um mês depois da perda de Zé Celso, a classe teatral sofreu outro baque, com a morte do diretor Aderbal Freire-Filho, aos 82 anos. Ele havia sofrido, havia três anos, um acidente vascular cerebral, que o debilitou desde então.
Em sua carreira, Freire-Filho se notabilizou por reforçar a natureza literária do teatro, adaptando grandes romances para os palcos. “O Púcaro Búlgaro”, de Campos Carvalho, de 2006, e “Moby Dick”, de Herman Melville, encenado três anos depois, foram exemplos do que o diretor chamava de romance-em-cena.
Discípulo de Brecht, Freire-Filho se dedicou, nos anos 1980, a encenar uma geração de autores brasileiros, como Leilah Assumpção, Oduvaldo Vianna Filho e Aldomar Conrado. Como diretor, deixou a marca do seu rigor, sendo contra o espontaneísmo em cena. Ele marcava as posições no palco como se fosse um coreógrafo, na contramão do teatro contemporâneo.
Outro personagem notável que saiu de cena foi o Teatro Aliança Francesa, que persistiu no centro de São Paulo por 60 anos. Após uma última temporada com bons espetáculos do Grupo Tapa, que montava seus trabalhos lá desde 1986, a instituição gestora decidiu vender o prédio histórico que foi um ponto de resistência na ditadura militar.
A sala recebeu peças históricas, como a estreia, em 1969, de “Fala Baixo Senão Eu Grito”, de Leilah Assumpção, estrelando Marília Pêra, e “Um Grito Parado no Ar”, de Gianfrancesco Guarnieri, com Othon Bastos.
Mas o ano não se resumiu às mortes. “Traidor”, novo texto de Gerald Thomas, mostrou que o teatro é capaz de capturar o espírito do tempo. Na peça, Marco Nanini encarnou um homem à beira da loucura, que reflete sobre temáticas contemporâneas, como as guerras e a mudança climática. A produção é determinada pelo absurdo do personagem, esperando a chegada de uma tropa, que nunca chega.
Já no circuito comercial, “A Herança”, peça de cinco horas e meia escrita pelo americano Matthew Lopez, foi sucesso de público e crítica. Com Bruno Fagundes e Reynaldo Gianecchini no elenco, 11 atores traçaram um panorama da história da comunidade gay de Nova York, nos Estados Unidos, tematizando o horror durante a epidemia de Aids.
“Tom na Fazenda”, com Armando Babaioff, que teve nova temporada pelo país ao longo do ano, se sagrou como um fenômeno, passando a marca de 300 apresentações e dando continuidade ao sucesso que teve desde que estreou em 2016.
Em paralelo, a premiada montagem de “As Bruxas de Salém” pelos Satyros, em São Paulo, foi surpreendida nesta semana com a perda dos direitos autorais da peça escrita por Arthur Miller. A aquisião feita por Marcel Giubilei frustrou os fundadores da companhia, Ivam Cabral e Rodolfo García-Vázquez, quando tentaram estender as apresentações.
Notável ainda a presença crescente de trabalhos solo, que preencheram as salas do circuito. Foi o caso de adaptações literárias como “Escute as Feras”, com Maria Manoella dando corpo ao livro da antropóloga Nastassja Martin; “Vista Chinesa”, com Julia Lund estrelando uma versão da obra de Tatiana Salem Levy; além do universo de Guimarães Rosa, que inspirou Vera Zimmermann em “Diadorim” e uma trilogia com o ator Gilson de Barros.
Na dança, a São Paulo Companhia de Dança estreou o espetáculo “Le Chant du Rossignol”, uma criação do alemão Marco Goecke para o poema sinfônico de mesmo nome, composto por Igor Stravinsky, em 1917.
Na ópera, o ano foi marcado por uma polêmica envolvendo a montagem de “O Guarani”, no Theatro Municipal de São Paulo. Como mostrou a Folha de S.Paulo, a obra de Carlos Gomes teve uma leitura decolonial, seguindo a perspectiva da diretora Cibele Forjaz.
Segundo ela, as montagens da ópera reproduziam uma imagem preconceituosa e estereotipada dos indígenas. Por isso, a ópera teve intervenções da Orquestra e do Coro Guarani, e Peri e Ceci, cada um deles ganhou um duplo, que vagava no palco. Estudiosos da ópera criticaram a montagem, que pouco tinha a ver com as aspirações do compositor. E não só. A montagem de Forjaz mudou a obra de Carlos Gomes, excluindo o seu balé.
Osvaldo Colarusso, maestro que nos anos 1980 esteve à frente do Coro Lírico Municipal, classificou a atitude como “burrice”. “É um modismo tentar dar uma roupagem politicamente correta para a obra. Certamente Carlos Gomes iria odiar”, disse ele.
Redação / Folhapress