‘Tento ser forte, mas sinto que vou enlouquecer’, diz palestino que perdeu mãe, 3 filhas e 3 netos em Gaza

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Jamal Naeem, 54, conta que mal havia fechado os olhos quando a casa em que dormia se transformou em um monte de escombros. Doze dias antes, o palestino tinha se mudado com a família para a cidade de Deir al-Balah, na Faixa de Gaza, para fugir dos bombardeios que tomavam a região central do território, onde viviam. Pouco adiantou. Naquele 6 de janeiro de 2024, um ataque pôs fim ao novo abrigo e às vidas de sua mãe, de três filhas e de três de seus netos.

No mês passado, Jamal foi chamado a convite à Câmara dos Deputados, em Brasília, para compartilhar sua história e sua perspectiva sobre a guerra Israel-Hamas. A audiência pública, proposta pelos deputados Padre João (PT-MG) e João Daniel (PT-SE), teve presença maciça de parlamentares de esquerda, mas também foi acompanhada por membros da oposição, que não escondiam sua desconfiança.

Ao término da exposição de Jamal, e para a surpresa de muitos dos presentes, o bolsonarista Abilio Brunini (PL-MT) se mostrou sensibilizado com o relato e fez questão de procurá-lo pessoalmente para manifestar sua solidariedade. “Ninguém pode celebrar a morte de inocentes”, afirmou o deputado.

Reitor da Faculdade de Odontologia da Universidade da Palestina e dono de uma clínica na Faixa de Gaza, Jamal hoje vive em Doha, no Qatar, ao lado de sua esposa, seis filhos e dois netos. Tanto a faculdade quanto a clínica foram bombardeadas.

Parte da família, ferida durante o ataque de 6 de janeiro, recebeu autorização de Israel para ser levada ao Egito de ambulância. Já a esposa de Jamal tinha viajado a Meca, na Arábia Saudita, pouco antes da eclosão da guerra, e reencontrou seus entes em Doha após seis meses.

“Eu tento ser forte. Mas, às vezes, sinto que vou enlouquecer”, afirma Jamal à reportagem, ao falar sobre as mortes de sete pessoas de sua família e do que tem vivido desde o início da guerra.

Jamal é um dos irmãos de Bassem Naeem, integrante do braço político do Hamas que chegou ao posto de ministro da Saúde em 2006, após a eleição que colocou a facção terrorista no poder em Gaza.

Bassem, atualmente, é o representante para relações exteriores do braço político do Hamas. Jamal, por sua vez, nega ter qualquer relação com a facção e diz ter vindo ao Brasil por intermédio do Instituto Brasil-Palestina. “Não sou membro do Hamas, não tenho nenhuma relação com o Hamas. Mas acredito na resistência contra a ocupação.”

No último dia 10, Bassem foi fotografado ao lado do deputado João Daniel, coautor da audiência pública que ouviu Jamal, durante um evento pró-Palestina em Joanesburgo, na África do Sul. Após a repercussão negativa, o petista negou que conhecesse Bassem. Questionado se sabia do vínculo de Bassem com Jamal quando recebeu este na Câmara, Daniel respondeu que não.

A seguir, o relato de Jamal sobre a guerra.

*

ROTA DE FUGA

Antes desta guerra, trabalhava como reitor na Faculdade de Odontologia da Universidade da Palestina. Antes disso, morei por cerca de 17 anos na Alemanha. Fui professor universitário, cientista e fiz a minha especialização em ortodontia lá. Em 2006, voltei para Gaza.

Minha casa estava numa zona considerada segura pelos israelenses, em Nuseirat, mas as explosões e os ataques estavam muito próximos de nós, então decidimos nos mudar para Deir al-Balah, para a casa do meu cunhado. Levei minhas galinhas —eu tinha cerca de 20 delas— e três perus porque tinha medo de que passássemos fome. Isso foi em 24 de dezembro.

A ÚLTIMA REFEIÇÃO

Vivemos cerca de 12 dias em Deir al-Balah. No último dia, estávamos muito felizes. Comemos juntos e cozinhamos algumas batatas —elas estavam muito, muito caras naqueles dias, e foi a primeira vez em dois meses que tivemos batatas em casa.

Falamos sobre o nosso futuro, sobre o que faríamos depois desta guerra. Eu ri e fiz uma piada com os meus filhos: “Estou muito velho agora. Depois da guerra, vocês vão trabalhar, e eu fico com o dinheiro” [risos].

Por volta das 21h, todos foram dormir. Eu fiquei acordado até 22h30. Ouvi as notícias e vi que todos estavam bem e cobertos [em suas camas]. Fazia frio naquele 6 de janeiro.

Fechei os olhos por cerca de dez minutos. Acordei com o barulho das paredes trincando e de algumas pedras caindo sobre a minha cabeça. Depois de dez segundos, entendi que era um ataque. Eu vi a minha casa dividida em duas partes. A metade em que as meninas estavam colapsou.

ENTRE ESCOMBROS

Tive uma fratura no ombro e nos dedos da mão esquerda. Ouvi uma filha minha chorando e dizendo: “Papai, papai, venha nos ajudar”. Minha mãe também estava chorando, mas eu não conseguia ver nada na escuridão. Todas elas gritavam e pediam ajuda para sair dos escombros.

Levei cerca de uma hora para ir até o hospital porque tentei, na primeira hora, ver onde estavam os meus filhos, onde estavam os meus netos. Mas não consegui encontrar nada. Muitos deles já tinham sido levados.

No hospital, encontrei as outras crianças com fraturas nas pernas, no fêmur. Minha neta tinha uma fratura na base do crânio e ficou por uma semana sem conseguir se mexer ou falar. Perguntei às pessoas: “Onde estão os outros?”. Eles me levaram para a geladeira que guardava os corpos dos mortos, e encontrei duas filhas e dois netos.

Quanto aos dois últimos [uma filha e um neto], não conseguiram encontrar [em 6 de janeiro]. No segundo dia, encontramos as pernas do meu neto e mais nada. Ele tinha três anos. Minha filha ainda hoje está debaixo da casa.

Minha mãe, que tinha 87 anos, sobreviveu por 24 horas, e depois morreu.

ALVOS

É muito difícil [de entender]. Eu sou um acadêmico, um professor universitário. Minhas filhas eram dentistas. Não encontrei nenhum motivo para o ataque à minha casa.

Sempre pensei que, quando atacassem alguém perigoso, eu poderia acabar sendo ferido, mas por que me atacaram? Eu não entendo. Até hoje me pergunto o porquê.

Em uma vizinhança, em Gaza, eles [do governo israelense] atacaram cerca de dez prédios altos ao mesmo tempo. Cerca de 200 pessoas morreram nesse ataque. Ninguém entendeu. Eu imagino que tinha um terrorista entre eles. Você vai atacar dez prédios de uma só vez, cheio de pessoas, por causa de um? Não entendo.

GAZA ANTES DA GUERRA

A vida toda sempre foi muito difícil.

A água [potável] é bombeada [em uma estação] e alguém traz ela para você, mas você não sabe o quão limpa ela está.

Às vezes, as crianças têm piolho porque não estão limpas. As pessoas têm doenças crônicas e não têm medicamentos. Eu tinha um amigo, também dentista, que morreu porque seu diabetes estava muito alto e ele não conseguia o remédio.

Temos problemas com doenças infecciosas, a hepatite A é muito comum. Temos muitas doenças estomacais, diarreia… Isso, antes da guerra. Agora, está pior.

EMBARGOS

Você tenta viver normalmente, mas não tem permissão para viver como uma pessoa normal.

Tentamos muito construir Gaza, apesar do cerco, apesar das guerras e de muitos, muitos ataques do governo israelense, mas é muito difícil.

Sempre fomos impedidos de trazer qualquer medicamento, qualquer instrumento, qualquer equipamento [sem o aval de Israel]. Era proibido ou havia atrasos muito grandes.

Por exemplo: a ressonância magnética. Tínhamos um aparelho muito bom e muito caro, que custou cerca de US$ 1 milhão, no Hospital Al-Shifa. Não pudemos usar por dez anos porque estava faltando uma peça.

Como dentista, por muitos anos fui proibido de levar para Gaza a amálgama de prata para fazer obturações.

A VIDA APÓS A GUERRA

Quando você vê suas filhas mortas, não é normal. Não consigo dormir normalmente. Meu filho está sempre chorando por causa de suas irmãs. Uma delas era a melhor amiga dele.

Eu tento ser forte. Mas, às vezes, sinto que vou enlouquecer quando penso nisso.

Meu centro [odontológico] foi bombardeado, não há mais nada. A universidade foi bombardeada. Minha casa em Gaza foi bombardeada. Não tenho mais nada agora. Perdi todas as bases da vida.

Para pessoas normais, não há futuro em Gaza. Mas eu voltarei e farei tudo de novo porque é nosso dever estar lá. Acho que o governo israelense quer que a gente saia de Gaza. Não sairemos. Ainda vamos reconstruí-la. Vai demorar dez anos, um ano, não sei. Mas vamos reconstruí-la novamente.

BIANKA VIEIRA / Folhapress

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