SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Sankofa é um conceito originário da África Ocidental que encoraja a volta às raízes e a busca do conhecimento perdido. Representado por um pássaro que olha para trás enquanto avança, o símbolo valoriza a reflexão sobre a história, a identidade e a sabedoria ancestral negra.
Daí a importância de voltar os olhos para os anos de 1700 no Vale do Guaporé, em Mato Grosso, onde viveu Tereza de Benguela. Ela era considerada uma rainha. Comandou um quilombo e resistiu às investidas da coroa portuguesa.
Como outras heroínas negras, foi uma das figuras esquecidas pela história oficial do Brasil. No entanto, nos últimos anos, graças ao movimento de mulheres negras, seu legado tem sido resgatado com o intuito de recontar a história nacional e ampliar as narrativas que explicam a formação do país.
A importância da quilombola foi oficializada em 25 de julho de 2014. A lei 12.987, sancionada no governo de Dilma Rousseff (PT), instituiu o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. A data passou a ser celebrada todos os anos.
“Infelizmente, não temos ao longo da história muitos nomes de pessoas que parecem com a gente retratadas como heróis ou heroínas. Tereza superou essa barreira. Há quanto tempo ela morreu fisicamente, mas conseguiu se manter viva, pulsando em nós?”, diz a historiadora Silviane Ramos.
Do quilombo do Calvário, em Vila Bela da Santíssima Trindade (MT), Silviane seria da quinta geração de descendentes de Tereza. “Uma pesquisa genética da Universidade de Sobornne, feita com quilombolas da minha região, revelou isso. Mas antes eu já me via assim, por pertencimento mesmo”, conta.
Tereza chefiava o Quariterê, maior quilombo do oeste do país, que ficava próximo de onde hoje está o município de Vila Bela. Sua história foi encontrada em dois documentos oficiais do século 18: os Anais de Vila Bela e o relatório de Filipe Coelho, um funcionário da Coroa portuguesa.
“Rainha foi título eurocentrado encontrado pelos colonos para designar a forte liderança exercida por Tereza. Tudo passava por ela no quilombo”, explica Bruno Rodrigues, professor de história da Universidade Federal de Mato Grosso.
Segundo ele, o nome pelo qual a quilombola é conhecida talvez nem seja o seu verdadeiro. “Tereza é um nome cristão e Benguela faz referência ao porto do qual ela foi retirada na África”, diz.
Para além dos registros históricos, ela se mantém viva no imaginário dos quilombolas que hoje vivem no Vale do Guaporé, região que faz divisa com o estado de Rondônia e fronteira com a Bolívia.
“A primeira lembrança que eu tenho sobre ela é da minha avó e minha tia no quintal, batendo palmas e cantando uma música que dizia como era bom o tempo da rainha”, conta Silviane. Ela também integra a Conaq (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos) de Mato Grosso.
A história de Tereza serve de inspiração para as mulheres de Vila Bela, onde hoje existe o Coletivo Herdeiras do Quariterê.
Czarina Farias de Brito é assistente social, quilombola e faz parte do grupo de mulheres. Como secretária de Cultura do município, ela sente a responsabilidade de passar adiante esse legado.
“Eu passo para minhas filhas e neta a história dessa rainha, da nossa terra, que liderou um quilombo por tantos anos. Também está incorporada nas nossas políticas de cultura. Ela é um exemplo extremamente positivo e necessário”, afirma.
FIM DO QUARITÊ REPRESENTOU O ABANDONO
Fundado em 1730, o quilombo do Quariterê resistiu por 70 anos. Ali Tereza de Benguela assumiu a liderança de cerca de 100 pessoas entre negros, indígenas e mestiços após a morte do marido, José Piolho.
Comandava com firmeza e castigava quem lhe desobedecia. Segundo Silviane, o quilombo contava com uma guarda capoeirista e armas.
O Quariterê vivia do cultivo de algodão, milho e mandioca. Além disso, fabricava tecidos em teares. Esses produtos, bem como os alimentos excedentes, eram comercializados com os colonos.
No final do século 18, Tereza foi capturada por uma bandeira (expedição) financiada pela Coroa. Segundo os relatos, uma vez presa, ela parou de falar, comer e morreu em decorrência dos maus-tratos e da falta de alimentação.
Para a engenheira agrônoma e quilombola mato-grossense Fran Paula, o fim do Quariterê representou mais uma ofensiva violenta à resistência negra, feita pelo Estado brasileiro, que em seguida abandonou a região.
“Hoje Vila Bela é um município com pouco investimento público estadual. Há um racismo institucionalizado. O Estado mantém distância à medida que não garante o reconhecimento dos territórios indígenas e quilombolas nem acesso a políticas públicas”, afirma.
Fran é de Campina de Pedra, comunidade quilombola do município de Poconé, em Mato Grosso. Ela também é educadora popular na Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional, com sede em Cáceres (MT).
O estado tem 60% da população negra, cujo modo de vida é impactado pelo encontro de três biomas: Pantanal, Cerrado e Amazônia. Segundo ela, o Vale do Guaporé, onde Tereza de Benguela viveu, agora é tomado pela produção de soja, pela pecuária de corte e pela mineração, sem respeito a essa diversidade.
“Um lugar de importância cultural, histórica e política está sendo anulado socialmente e esquecido de forma bem proposital. É uma região que mantém o coronelismo, o trabalho análogo à escravidão e outras formas de violação de direitos. Muitos quilombos são atingidos por agrotóxicos intencionalmente”, diz a quilombola.
Procurado, o Governo de Mato Grosso disse que as áreas quilombolas são de competência da União e que nunca recebeu denúncias relacionadas ao uso indevido de pesticidas no Vale do Guaporé.
Além disso, informou que distribui cestas básicas para as comunidades e promove incentivos à educação quilombola. Uma bolsa de estudo mensal, no valor de R$ 900, para estudantes e outros incentivos a projetos culturais estão entre as políticas do estado, segundo a gestão.
A Fundação Cultural Palmares, órgão da União responsável pela proteção dos direitos quilombolas, e a Prefeitura de Vila Bela da Santíssima Trindade também foram procuradas, mas não responderam até a publicação.
Vila Bela possui cinco dos ao menos 70 quilombos certificados pela Fundação Palmares no estado do Mato Grosso. A permanência dessas comunidades por quase 300 anos no território fala sobre a resistência travada por negros e negras tanto no campo como na cidade.
Olívia de Lucas, militante da Marcha Nacional de Mulheres Negras, defende a importância de conhecer trajetórias como a de Tereza para que a população negra não seja vista apenas a partir de um olhar de subserviência.
“Nossa energia vem dessas mulheres e dessa tradição. Tereza é um exemplo de mulher que se organizava para resistir a um Estado que queria seu extermínio”, diz
O projeto Quilombos do Brasil é uma parceria com a Fundação Ford
NADINE NASCIMENTO / Folhapress