‘Terra de Deus’, sobre fotografia e fé, é um dos filmes mais belos do ano

FOLHAPRESS – Em “Terra de Deus” estamos no século 19, num tempo em que a fotografia era algo ainda muito raro, difícil de manejar e de resultado incerto. Mas Lucas é um homem de fé —na imagem e em Deus. Ele aceita fazer uma árdua viagem partindo da Dinamarca por terras especialmente áridas até uma ilha na Islândia. O objetivo é a construção de uma igreja para a diminuta comunidade local.

A viagem é marcada, entre outras, pela perda do seu tradutor, que morre durante a travessia de um rio, enquanto levava a pesada cruz destinada à igreja. Se algo compensa os acidentes, parece, são as fotos. O que elas revelam? São basicamente retratos feitos naquele tempo em que era preciso o retratado ficar segundos e segundos imóvel, tempo de imprimir sua imagem na chapa.

A viagem traumática será também um momento de provar sua fé? Seria ela necessária? Um personagem diz ao pastor, e isso atinge toda a lógica do seu roteiro, que ele poderia muito simplesmente ter vindo de navio.

Então ele é movido por fé e por fotos, mas ambas são motivo de dúvida. A fé é revelação, um dom que têm certas pessoas. A fotografia é imagem, isso que de certa forma falta à fé. É a prova inequívoca —como nos lembra o “Blow Up” de Antonioni—, e ao mesmo tempo bastante equívoca, frágil —também “Blow Up” nos lembra disso. Traiçoeira, em suma.

Como bem advertiu o superior antes de sua partida, nessa ilha tudo induz à loucura, inclusive o fedor horrível do vulcão que existe por lá. Se Lucas se lança à aventura, se decide seguir essa trilha perigosa, não é, como diz a alguém, para conhecer as pessoas da região. Ele não conhece ninguém na travessia, salvo aqueles que o acompanham na jornada. Mas Lucas fotografa, registra.

Será o seu olhar como a câmera, que recebe a realidade, mas a devolve invertida? Não por acaso, certas imagens no filme mostram Lucas ao fotografar e, como, nas antigas máquinas, o que vemos é a imagem invertida do que o fotógrafo pretende captar. Sua viagem seria um fato de fé ou de dúvida?

Não se pode desprezar a imagem do vulcão, nem a da ilha praticamente deserta. Ela lembra o “Stromboli”, de Rossellini, onde, ao final da Segunda Guerra, uma refugiada casa com um soldado italiano para se livrar do campo em que se encontra detida, mas acaba na árida ilha, que abriga também um vulcão. Ali, no entanto, ela encontrará a fé. Será o lugar de uma revelação.

A origem de “Terra de Deus” (Dinamarca, Islândia) nos lembra também de Dreyer, em seu “A Palavra”, no qual o cineasta nos leva a testemunhar um milagre, uma ressurreição, derivada exclusivamente da fé.

Essas revelações é que parecem vedadas a Lucas, por mais que ele as busque. Do seu amigo tradutor, que morre na travessia, lhe restará uma foto. Contemplá-la, porém, parece confirmar a distância que existe entre o ser vivo e sua imagem.

Algo que se confirmará no seu laboratório de revelação. Ali ele revela a imagem de Anna, a filha mais velha de seu hospedeiro. Anna está ao lado do pastor fotógrafo e vê sua imagem surgir lentamente. Revelar-se. Um pouco mais tarde, no laboratório de revelação, Anna acaba por revelar seu amor e beija o religioso com afeto. Ele retribui.

Será esse o começo do fim das ilusões para Lucas? Os mistérios que o envolvem parecem se multiplicar nessa terra que só com alguma ironia se pode denominar “de Deus”. Pois o equipamento fotográfico, que contém e guarda as imagens, se perde, e na igreja que constrói não consegue pronunciar sua primeira prédica.

Como se não bastasse, existe na história o pai de Anna —seu hospedeiro—, que tem ainda uma outra filha, Ida, mais jovem. Esse pai sem esposa tem consigo, mais ou menos inseparáveis, suas duas filhas. Ele é claramente incestuoso. Detalhe, por assim dizer, que não será alheio ao destino do jovem pastor nessa implacável ilha —como alguém a qualifica.

Eu sou Deus, pensará em algum momento Lucas. Pois se todos nós temos algo de divino, ele pretende ter um tanto mais —por isso foi o escolhido para essa missão. Mas Deus é como mágica, dirá Lucas em outro momento. Ou seja, Deus não se revela, oculta-se. Como pode um homem de fé resistir a todas as provações da Terra e, ainda, a um mistério de tal densidade, a uma tal obscuridade?

Essas questões que atormentam o jovem pastor em seu árduo trajeto habitam qualquer um, místico ou não. E justificam esse filme, que não deixa de ser uma derrota da fé e uma vitória do Deus oculto.

Ao contrário de Rossellini ou Dreyer, o autor deste filme, Hlynur Palmason, não parece vislumbrar a hipótese da graça a tocar o jovem religioso.

“Terra de Deus” é um dos filmes mais belos do ano até aqui. E não é de estranhar que tenha em São Paulo um lançamento tão tímido.

TERRA DE DEUS

Avaliação Muito Bom

Classificação 14 anos

Elenco Elliott Crosset Hove, Ingvar Eggert Sigurôsson, Victoria Carmen Sonne

Produção Dinamarca, Islândia, França, Suécia

Direção Hlynur Pálmason

Roteiro Hlynur Pálmason

INÁCIO ARAUJO / Folhapress

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