Terremoto no Marrocos acumula 3.000 histórias que poderiam ter sido

MARRAKECH, MARROCOS (FOLHAPRESS) – Se Wissal Abdullah não tivesse morrido esmagada em seu berço, no pavimento inferior da casa, no momento em que vinte pessoas de sua família jantavam na varanda acima dela, às 23h11 de sexta-feira (8), ela poderia ter uma vida dura e boa nas montanhas do Marrocos.

Naquele momento, um terremoto de magnitude 6,8 abalou a região ao sul da cidade de Marrakech, deixando quase 3.000 mortos.

Wissal havia nascido há um ano e meio numa aldeia com cerca de 150 pessoas. Se ela não tivesse sido morta, é provável que sua vida já estivesse traçada, como foi a da sua mãe, Rafida, e a da mãe de Rafida e a da mãe da mãe de Rafida.

Uma existência rude, por vezes severa, mas com muitos momentos de felicidade, como aconteceu há alguns meses, quando Wissal começou a balbuciar “mamãe” e “papai” em berbere, a língua do povo originário de Marrocos.

Se não tivesse sido morta, por volta dos seis anos de idade ela iria para a escola, que funciona ali mesmo em sua aldeia. Quatro ou cinco professores costumam dar aulas para grupos de 10 ou 20 alunos, e Wissal aprenderia o árabe, obrigação educacional imposta pelo reino, que se tornaria sua segunda língua.

Antes dos 12 anos, ela poderia também falar francês, uma vez que a França colonizou o país no século passado e suas marcas permanecem na cultura marroquina. Seus pais pagariam 50 dihrams mensais (R$ 25) aos professores por sua educação e ela teria ainda aulas da ciência da matemática, fundamental para fazer negócios ou mesmo descer à grande vila Ouirgane, de 7.000 habitantes, e fazer compras no mercado.

Fora de casa, ela brincaria com as outras crianças, mas também aprenderia a tirar o leite de vacas e ovelhas, assim como assistiria sua mãe matando galinhas e lebres para fazer o cuscuz. E a acompanharia à feira semanal na grande vila, onde veria a mãe comprar cebolas, cenouras, batatas e tomates, caso sua família não tivesse um pedaço de terra para cultivar os alimentos ou caso simplesmente não chovesse.

Ela poderia colher nozes, amêndoas, azeitonas e, nos anos de boa chuva, cerejas no campo. Também colheria menta, que é misturada com o chá verde da China e se torna a bebida mais consumida pelos aldeões. O café vem bem atrás. Bebe-se refrigerante às vezes, mas nada de álcool.

Os animais são criados na aldeia, mas em Tikffiste, a quase 2.000 metros de altitude, uma vaca e oito caprinos morreram sob os escombros do terremoto. Por ora, todos dormem ao relento e recebem ajuda de caridade, pois as equipes de salvamento ainda não conseguiram chegar lá.

Em algum momento da infância ou da adolescência, Wissal provavelmente começaria a acompanhar os pais nas cinco visitas diárias à mesquita da aldeia, onde o imã explica os princípios do Alcorão. O imã orientaria a moça, uma vez por semana, a sempre fazer o bem, como fornecer alimentos aos vizinhos, caso ela tivesse mais do que eles. Suas orações aconteceriam cinco vezes ao dia –às 5h, às 13h, às 16h, às 19h e às 20h, cada sessão durando entre 15 minutos e meia hora.

Quando chegasse aos doze anos, ela passaria para a escola de Ouirgane, que fica a seis quilômetros a pé, montanha abaixo. Se tivesse vivido na época de sua avó ou bisavó, a caminhada seria mais difícil, pois a rota era adequada para mulas e, mais tarde, para motocicletas.

Mas, há 16 anos, o governo construiu uma estrada de terra até lá em cima, além de levar eletricidade e instalar uma bomba para trazer água de nascentes próximas. Agora, paga-se cerca de 250 dihrams por mês (R$ 125) pela água e luz.

Na TV de casa, Wissal assistiria a filmes de Hollywood, para possível desgosto de seus pais, que prefeririam que ela se ativesse a programas religiosos. Os mais velhos talvez também não gostassem quando ela se conectasse com a internet via telefone celular –que não pega muito bem lá no alto, mas funciona–, pois poderia ser muito influenciada pelos hábitos não muçulmanos do Ocidente.

Na segunda escola, Wissal poderia conhecer um rapaz que fizesse sua respiração falhar, ou talvez ela já tivesse conhecido alguém assim na própria aldeia. Aos 20 anos, ela poderia seguir para a cidade grande e entrar numa faculdade, caso seus pais tivessem dinheiro para mantê-la por mais alguns anos.

Mas, se ficasse na vila, ela teria que se casar, assim como os homens dessa idade, pois o costume é que todos precisam constituir uma família. Seu coração ficaria despedaçado caso o rapaz que amasse não viesse falar com os pais dela, mas, caso o pedido viesse de um indesejado, Wissal também poderia negar o noivado –um avanço das últimas décadas.

Seu pretendente, mesmo que pobre, faria uma festa em que todos os parentes, dezenas deles, seriam convidados. A festa teria música, comida e chá de menta e duraria seis ou sete dias. A música poderia vir do telefone ou de músicos contratados. Mesmo que pobre, o noivo precisaria juntar uma fortuna, talvez 10 mil dihrams (R$ 5.000), para bancar os festejos. Os familiares dele contribuiriam.

Casada, ela teria três ou quatro filhos, passaria a fazer as compras da casa e, se essa se tornasse pequena, já que a dividiria com muitos familiares, Wissal e seu marido fariam planos de aumentá-la, ou mesma de construir uma nova morada.

Para fazer os tijolos, ela o ajudaria a preparar o barro com água e traria palha de espigas de milho para misturar com a massa vermelha, tornando-a muito mais forte. Eles espalhariam a massa no chão e enfiariam gravetos no meio, para moldar as peças no tamanho certo. Se fosse no verão, em dois dias tudo estaria seco; no inverno, em cinco.

Os dois ergueriam as paredes colocando algumas pedras no meio e colariam tudo com mais barro. Trançariam o teto com caules de árvores finas e estenderiam um plástico em cima, para evitar que a água da chuva escorresse e molhasse seu leito. Por fim, uma cobertura final de barro faria o arremate. E, talvez, ali, vivessem felizes para sempre.

Mas essa é a “não história” de Wissal Abdullah, pois, quando alguém morre neste mundo, não deixa para trás apenas tudo o que tem ou tudo o que é. A maior tristeza é que a pessoa perde tudo aquilo que ainda viria a se tornar.

IVAN FINOTTI / Folhapress

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