SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A Justiça pode, em tese, anular transferências de bens feitas por ex-diretores da Americanas em meio ao escândalo bilionário da empresa. E um dos caminhos para isso é semelhante ao da cassação do mandato de Deltan Dallagnol (Podemos-PR).
A discussão surge porque, no caso da Americanas, a Folha revelou que a ex-diretora Anna Christina Ramos Saicali transferiu para seu filho as quotas de uma empresa com patrimônio de R$ 13 milhões poucos dias antes do anúncio, feito pela varejista, de que havia inconsistências contábeis da ordem de R$ 20 bilhões no balanço.
O ex-presidente da Americanas, Miguel Gutierrez, fez algo parecido. Segundo a revista piauí, ele transferiu três imóveis para empresas de seus parentes e dele mesmo, no valor total de R$ 2,1 milhões, durante o processo de mudança no comando da varejista.
Ambos negam ilegalidade nessas iniciativas.
Segundo o advogado Fernando Neisser, se ficar comprovado que essas movimentações, ainda que legais, tenham se dado com o objetivo de blindar o patrimônio contra eventuais punições financeiras, é possível que a Justiça venha a anular as transferências.
“Poderia se configurar uma fraude à lei”, diz o advogado do escritório Neisser & Bernardelli Advocacia.
Fraude à lei é uma figura jurídica caracterizada pela prática de uma conduta autorizada pela legislação, mas tomada com o objetivo de driblar alguma outra norma; dito de outra maneira, é uma forma de transgredir uma lei por meio do respeito a outra.
“A fraude à lei é consolidada no direito civil, principalmente na questão patrimonial, e foi levada há bastante tempo para o direito eleitoral”, afirma o advogado.
Foi esse o argumento que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) usou no julgamento de Deltan. Para a maioria dos ministros, ao se exonerar cinco meses antes do que seria necessário -o que é permitido-, o ex-chefe da Lava Jato em Curitiba teve por finalidade burlar as restrições da Lei da Ficha Limpa.
É que a Ficha Limpa impede a candidatura de membros do Ministério Público que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar (PAD).
Deltan não tinha nenhum PAD instaurado contra si, mas havia 15 procedimentos que, nos meses seguintes, poderiam virar PADs. E, se isso acontecesse, ele estaria inelegível. Daí por que o TSE viu fraude à lei na exoneração antecipada.
“O que o tribunal fez foi aplicar os efeitos da lei que se quis driblar. No caso, a Lei da Ficha Limpa”, afirma Neisser, presidente da Comissão de Direito Público e Eleitoral do Instituto dos Advogados de São Paulo.
De acordo com ele, seria possível fazer um paralelo teórico entre essa situação e a da Americanas, desde que existam provas de que ex-diretores da varejista se envolveram na fraude e conheciam o risco patrimonial.
Na reportagem da Folha sobre a transferência de bens, a defesa de Saicali negou que ela tivesse a finalidade de proteger o patrimônio de eventuais medidas decorrentes das investigações, como a penhora de bens, e afirmou que a cessão “decorreu de planejamento sucessório motivado por questões de saúde”.
A assessoria de Miguel Gutierrez afirmou que o executivo “nega veementemente a acusação de participação em fraude ou qualquer medida para ocultar patrimônio”.
Ainda que seja esse o caso, há outro caminho para eventuais credores da Americanas tentarem anular a transferência -caso se comprove responsabilidade de membros da antiga cúpula da empresa no escândalo.
“Não examinei o caso da Americanas, mas, em tese, toda pessoa que se desfaz gratuitamente de seus bens sem deixar nada para pagar as suas dívidas está praticando fraude contra credores”, diz Ricardo Zamariola, do escritório LUC Advogados.
A fraude contra credores é outra figura do Código Civil. Segundo Zamariola, ela cabe mesmo que a pessoa não tenha repassado a totalidade de seus bens. “Basta que, depois da transferência, o passivo seja maior que o ativo, ou seja, que as dívidas superem o patrimônio remanescente”, diz.
A advogada Nathalia Ribeiro, do escritório Amaral Lewandowski, também considera que, em tese, a figura aplicável a situações como essa seria a da fraude contra credores. “Mas ela não é automática, depende da verificação de alguns requisitos”, diz.
Para Ribeiro, além de haver a dívida e um patrimônio menor do que ela, seria preciso comprovar um conluio para frustrar eventual recebimento de créditos no futuro.
E, no atual estágio das investigações, não se sabe nem se a antiga cúpula da Americanas tem alguma dívida a quitar, seja a devolução de dinheiro obtido por meios fraudulentos, seja a indenização de acionistas minoritários, seja o pagamento de multas.
UIRÁ MACHADO / Folhapress