Tony Tornado emociona Ouro Preto com soul e relembra vida de cafetão e blackface em novela

OURO PRETO, MG (FOLHAPRESS) – Era 1971, anos de chumbo da ditadura militar. No ginásio do Maracanãzinho, no Rio, Elis Regina cantou “Black Is Beautiful”, dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle: “Hoje cedo, na rua do Ouvidor, quantos brancos horríveis eu vi, eu quero um homem de cor…”

Na plateia, estava Tony Tornado, um cantor de vistoso cabelo black power que, no ano anterior, havia conquistado o principal prêmio do 5º Festival Internacional da Canção, com a música “BR-3”. Ele não se conteve, subiu ao palco e ergueu o braço, com o punho cerrado, tal qual faziam os Panteras Negras, nos Estados Unidos.

O gesto antirracista lhe custou caro. Foi logo algemado e levado para a prisão.

Mais de meio século depois, agora um cantor (e também ator) consagrado, Tornado fez o gesto icônico mais de uma vez durante show na sexta-feira (23) à noite. Era o momento final -e apoteótico- da série de participações dele na 18ª edição da CineOP, a Mostra de Cinema de Ouro Preto, na qual foi o principal homenageado neste ano.

Em um amplo salão do centro de convenções da cidade mineira, lotado assim como o Maracanãzinho naquele dia, um dos pais do soul no Brasil cantou “Sou Negro” (“o meu caráter não está na minha cor”), retomou clássicos do seu maior ídolo, James Brown, e lembrou o amigo Tim Maia em hits como “Primavera” e “Sossego”.

Aos 93 anos, Tornado não dança com a energia e a sensualidade de antes, e falta à sua voz a potência que ressoava na década de 1970, mas ele conduziu o espetáculo em Ouro Preto com vigor e carisma incomuns. Estava acompanhado do filho Lincoln, também cantor e ator, da cantora Francine Môh e da banda Funkessência.

Foi aplaudido de modo fervoroso por um público, em sua maioria, na casa dos 20 e 30 anos, gente que só conheceu Tornado muito tempo depois daqueles anos turbulentos.

Na gelada noite anterior, em uma cerimônia no cinema a céu aberto na praça Tiradentes, ele havia recebido o prêmio Vila Rica. Comovido, lembrou filmes importantes dos quais participou, como “Pixote”, de 1980, de Hector Babenco, e “Quilombo”, de 1984, de Cacá Diegues –este último exibido pelo festival.

“Gosto muito de ‘Quilombo’, o personagem do Ganga Zumba foi um marco para mim”, diz Tornado à Folha. Um dos recortes da CineOP neste ano é o diálogo do cinema com a chamada Música Preta no Brasil, e Tornado, como ator e cantor, é figura central nessa intersecção.

Durante a cerimônia e em outros momentos da sua passagem por Ouro Preto, ele também lembrou trabalhos nem tão nobres. “Fiz filmes bem ruins na Boca do Lixo, em São Paulo, era um negócio horroroso. Eu perguntava ao diretor sobre o script e ouvia: ‘não tem'”, lembra. Entre esses títulos, “Clube das Infiéis” (1974) e “As Amantes de um Canalha” (1977).

Antes de iniciar esse trânsito entre novelas da Globo, filmes e a soul music, Tornado viveu mais de quatro anos no Harlem, bairro de população majoritariamente negra em Nova York.

“Meu início lá foi difícil, fui roubado quatro ou cinco vezes. Numa delas, me abordaram e eu disse: ‘I am brazilian [eu sou brasileiro]’. O ladrão respondeu: ‘I don´t care, man, give me your shoes [algo como ‘não tô nem aí, cara, me dá seus sapatos’]”, lembra, imitando o sotaque de um jeito divertido.

Acabou se adaptando. “Eu era um belo de um cafetão, com 20 mulheres na rua. Me chamavam de Comfort”, diz. Num dia no Harlem, chegou a notícia de que Tim Maia havia sido preso. Alguém falou: “chamem o Comfort!”. E lá foi Tornado tirá-lo da cadeia. Tornaram-se grandes amigos.

De volta ao Brasil, deportado, ganhou prestígio como soulman de olho na teledramaturgia. “Todo cantor é um ator em potencial. A música foi um trampolim para que eu chegasse à televisão [primeiro na Tupi, em 1972, depois na Globo, três anos depois]. Naquela época, eram poucos os lutadores, como Grande Otelo, Ruth de Souza e Léa Garcia, e eu precisava reforçar essa luta.”

Em encontro com jornalistas em Ouro Preto, ele ficou com a voz embargada ao rememorar a novela “A Cabana do Pai Tomás”, de 1969, em que o ator Sérgio Cardoso teve o rosto pintado de preto, o blackface, para interpretar o personagem que dava título à produção. “Uma coisa escabrosa.”

Ainda há muito para avançar, mas Tornado vê evolução na representatividade nos elencos. “Eram mais de cem atores em ‘Roque Santeiro’ e só tinha eu de preto”, lembra. “Em ‘Amor Perfeito’, a novela que faço agora, são diversos atores negros.”

Ao longo de mais de quatro décadas na Globo, fez mais de 20 novelas, além de programas de humor. Talvez seu melhor momento tenha sido “Agosto”, minissérie de 1993 baseada no romance de Rubem Fonseca. Interpretou Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal de Getúlio Vargas.

“Ao me convidar, o diretor Carlos Manga falou: ‘Você é muito aberto, divertido, preciso de um cara fechado'”, conta Tornado, que assim -sisudo e compenetrado- viveu o Anjo Negro, como era conhecido o homem que acompanhava o líder gaúcho.

Nascido em 1930 (“eu servi o Exército com o Silvio Santos”), Tornado diz que seu melhor personagem ainda está por vir. E arremata: “Quando o ator diz ‘estou legal’, aí perdeu, mané”.

NAIEF HADDAD / Folhapress

COMPARTILHAR:

Participe do grupo e receba as principais notícias de Campinas e região na palma da sua mão.

Ao entrar você está ciente e de acordo com os termos de uso e privacidade do WhatsApp.

NOTÍCIAS RELACIONADAS