LONDRES, REINO UNIDO (FOLHAPRESS) – Keir Starmer será o novo primeiro-ministro britânico e vai pôr fim a um ciclo de 14 anos de governos conservadores, tirando do poder o premiê Rishi Sunak. A pesquisa de boca de urna das eleições gerais no Reino Unido, que ocorreram nesta quinta-feira (4), indica que o Partido Trabalhista, do qual Starmer é líder, conquistou 410 assentos dos 650 da Casa dos Comuns.
Com esse resultado, os trabalhistas dobraram sua presença no Parlamento, obtendo 209 novos lugares em comparação com as eleições de 2019 ou 205 a mais em relação a quando o Parlamento foi dissolvido por Sunak, em maio.
Ainda de acordo com a pesquisa de boca de urna, divulgada pela emissora BBC, os conservadores conquistaram 131 assentos, tendo perdido 241 lugares em relação a 2019 e 213 em relação à data da dissolução uma derrota histórica. Em seguida vêm os liberais democratas, com 61 parlamentares, e o Reform UK, de ultradireita, com 13 assentos.
Os números expressivos podem sugerir uma empolgação com Starmer, mas refletem mais o cansaço com a gestão conservadora e o pragmatismo do eleitorado diante do perfil do futuro premiê, um ex-socialista que forçou seu partido ao centro, afastando ideias e lideranças à esquerda para convencer indecisos e retornar ao poder. De forma algo personalista e com um viés liberal, ele vem pregando há meses que mudou o partido para primeiro pensar no país e depois na própria legenda.
Logo após a divulgação da pesquisa, Starmer agradeceu aos eleitores pelo resultado em uma publicação no X. “A todos que fizeram campanha para o Partido Trabalhista nesta eleição, a todos que votaram em nós e confiaram na mudança do nosso partido obrigado.”
Starmer votou no início da manhã desta quinta. Estava acompanhado da esposa, Victoria. Em seu último compromisso de campanha, no dia anterior, passou por País de Gales, Escócia e por Redditch, reduto conservador na Inglaterra, e reforçou o pedido de comparecimento às urnas. “O futuro do Reino Unido está na cédula. Vote para virar a página dos últimos 14 anos. Vote em um Partido Trabalhista que mudou e que agora está pronto para servir. Mas a mudança só acontecerá se você votar nela.”
A Folha de S.Paulo compareceu a um dos locais de votação no distrito londrino de Holborn & St. Pancras, do qual Starmer é o representante. De dez eleitores que conversaram com a reportagem, cinco afirmaram ter votado nos trabalhistas, dois no Partido Verde e três em candidatos independentes. Nenhum disse ter votado no Partido Conservador.
“Votei no Trabalhista, infelizmente. Eu teria optado por Andrew Feinstein [candidato independente], mas acho que isso [voto nos trabalhistas] provavelmente acabará com os conservadores”, afirmou Kemi Oduntan, 21, atualmente desempregada.
O arquiteto Nick Alexander, 84, disse estar tão seguro da vitória trabalhista que preferiu dar seu voto ao Partido Verde, mas elogia Starmer. “Ele é acusado de ser comum, sensato e não extravagante o que é muito britânico, pode se dizer. Eu o conheço há muito tempo e estou muito impressionado.”
Mas há também os abertamente críticos ao líder trabalhista, caso do pianista e professor Duncan James, 74. “Sou ex-membro do Partido Trabalhista e saí por causa das políticas de Keir Starmer. Ele é antissocialista, desviou-se demais para o centro e mudou o partido. O que me fez finalmente sair em 2022 foram suas opiniões pró-Israel, desequilibradas e racistas em relação aos palestinos”, afirma James. Sobre o conflito Israel-Palestina, a plataforma trabalhista prega apoio à criação de um Estado palestino “como uma contribuição para um processo de paz renovado que resulta numa solução de dois Estados”.
Essa guinada ao centro de Starmer é também um rompimento com seu próprio passado. Advogado de direitos humanos, ele foi membro dos Jovens Socialistas do Partido Trabalhista em East Surrey e editor da Socialist Alternatives, uma revista trotskista. Vindo de uma família de classe média, seu pai trabalhava como ferramenteiro e a mãe era enfermeira do NHS, o sistema de saúde britânico que inspirou o SUS brasileiro. Ele foi o primeiro da família a ir para uma universidade, em Leeds, onde cursou direito.
Ao assumir a liderança do Labour, em 2020, Starmer escanteou os nomes de esquerda, incluindo seu antecessor, Jeremy Corbyn, que acabaria colocado para fora do partido. Corbyn empolgou jovens com seu discurso radical, mas fez com que eleitores moderados se afastassem. Também foi alvo de investigação interna após acusações de assédio e por falas antissemitas.
O futuro premiê elencou seis “primeiros passos para a mudança” no governo: regras fiscais rígidas; melhora no sistema público de saúde, com 40 mil consultas extras por semana; novo comando de segurança de fronteira para conter a imigração ilegal; criação de uma estatal para energia limpa; contratação de 6.500 novos professores e policiamento local para diminuir a criminalidade.
Sobre migração, tema que mais mobiliza os britânicos, Starmer promete enterrar o plano de Sunak de enviar requerentes de asilo para Ruanda, na África Oriental, sob forte crítica de organizações de direitos humanos. Em seu lugar, promete criar um nova unidade policial transfronteiriça e colocar mais mil assistentes sociais para reduzir o atraso no processo de asilo, bem como criar um sistema que reencaminhe rapidamente a seus países pessoas em situação ilegal. A ideia é também instituir uma política de enfrentamento das crises humanitárias na origem, evitando os fluxos migratórios.
Antes de Starmer, o Reino Unido teve uma sequência de cinco primeiros-ministros conservadores, com quatro ciclos eleitorais (o último, em 2019) e dois referendos, incluindo o brexit. A saída britânica da União Europeia, aprovada em 2016, tornou-se um fardo devido às dificuldades de implementação e contribuiu para o desgaste que culminou com o retorno dos trabalhistas.
Em certa medida, o Labour passou por processo semelhante antes dos 14 anos de domínio dos conservadores. Foram 13 anos de governo trabalhista, de 1997 a 2010, dos quais dez deles sob a bandeira do chamado “Novo Trabalhismo”, com Tony Blair, e os três anos finais, turbulentos, com Gordon Brown.
A controversa decisão de invadir o Iraque em 2003, a crise financeira mundial de 2008 e políticas pouco efetivas para conter a migração de quase 1 milhão de pessoas de países do Leste Europeu que haviam aderido à União Europeia da qual o Reino Unido ainda fazia parte à época levaram os trabalhistas a derrotas acachapantes.
O pêndulo britânico, agora, volta à esquerda, ou quase esquerda, a depender das ideias de Keir Starmer.
VANDSON LIMA / Folhapress