Trabalho invisível mina o potencial das empreendedoras de baixa renda

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Carolina Nascimento, 28, tem dois filhos e trabalha como manicure. Está separada do pai do filho mais novo, embora ele contribua com parte dos custos da criança. Mora sozinha, paga aluguel, deixa o filho de um ano e meio cedo na creche e trabalha 12 horas por dia em um salão na zona leste de São Paulo, do qual se tornou sócia.

O ex-companheiro pega o filho na creche e fica com ele até que Carolina possa buscá-lo. A filha mais velha, de nove anos, está morando temporariamente com o pai.

Carolina parou de estudar aos 18 anos, antes de entrar no Ensino Médio, quando estava grávida da primeira filha. Queria voltar aos estudos, mas não tem tempo. Também não consegue fazer a consultoria prestada pelo curso de empreendedorismo que acabou de fazer. A consultoria é essencial para ajudá-la a administrar melhor as contas, mas no seu tempo livre ela é mãe e dona de casa. Não sobra dinheiro para contratar ninguém capaz de ajudá-la com essas tarefas.

“Eu sempre fui ruim de matemática, tenho dificuldade em calcular as coisas. Mas para voltar a estudar, precisaria de alguém para ficar com o Antony”, diz ela, que é de Salvador e não tem parentes próximos em São Paulo.

O caso de Carolina está longe de ser isolado. Segundo levantamento feito pelo Sebrae nacional em setembro, com cerca de 7.000 empreendedores de todo o país, as mulheres gastam em torno de duas vezes mais tempo diário em cuidados com a família e com afazeres domésticos, em comparação aos homens. São as grandes responsáveis pelo trabalho invisível -uma série de tarefas domésticas e de esforços com dependentes (crianças, idosos, doentes ou pessoas com deficiência) que precisa ser realizada para que todos produzam e cumpram seu papel na sociedade.

De acordo com a pesquisa, enquanto as empreendedoras gastam, em média, 3,1 horas por dia para cuidar de pessoas, os homens dedicam 1,6 hora diária à mesma tarefa. Já os afazeres domésticos absorvem delas 2,9 horas por dia, enquanto eles gastam 1,5 hora na mesma função.

Pesquisadores do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas) já apontaram que, caso o trabalho invisível feminino fosse computado, esse esforço acrescentaria ao menos 8,5% ao PIB (Produto Interno Bruto) do Brasil.

Se conciliar o negócio próprio com a economia do cuidado já é algo desafiador para as empreendedoras em geral, o cenário fica pior quando se trata de mulheres pobres. No Brasil, dos 29,3 milhões de donos de negócio, 68% têm um rendimento de até dois salários-mínimos (hoje cerca de R$ 2.600), de acordo com pesquisa do Sebrae Nacional. Na faixa de menor rendimento, as mulheres somam 36% das empreendedoras, fatia que cai para 28% considerando a faixa de dois a cinco salários mínimos de renda mensal.

“A cultura machista ainda privilegia os homens na atividade empreendedora”, diz a diretora de Administração e Finanças do Sebrae Nacional, Margarete Coelho. Para ela, é fundamental desenvolver políticas públicas que permitam às donas de negócios condições iguais para competirem no mercado. Quando uma mulher é dona do seu dinheiro, diz, ela tem a liberdade de fazer escolhas. “Isso impacta diferentes aspectos da economia e da vida da população, inclusive na redução da violência doméstica”, afirma.

Quando se trata de empreendedoras de baixa renda, é preciso lembrar que boa parte dessas mulheres vive em comunidades pobres, onde não é o poder público que toma conta. “Mas sim um poder paralelo, ilegal”, diz Vinícius Mendes Lima, fundador da agência de fomento social Besouro, que negocia cotas com a iniciativa privada para financiar cursos de empreendedorismo voltados à base da pirâmide. “Isso só aumenta o grau de vulnerabilidade delas e de suas famílias.”

Em um território onde não chega política pública e não há interesse da iniciativa privada em investir, a atuação fica restrita a micro e pequenos empreendedores. “São mulheres que muitas vezes não conseguiram emprego antes de engravidar, pela sua baixa qualificação profissional. Depois disso, passam até dez anos em um limbo, até que a criança cresça”, diz. Isso porque as grandes empresas não querem contratar uma funcionária com filho pequeno e que mora longe, uma vez que elas terão que faltar em caso de qualquer necessidade da criança, afirma.

Se elas moram em um local onde não existe rede de apoio pessoal ou social, é praticamente impossível arranjar um emprego, diz o fundador da Besouro, autor do livro “Elabore um plano de negócios: por necessidade -By necessity” (Essência do Saber, 2017).

“Fica claro, então, que um salário mínimo não paga toda a conta: gastos da casa, do filho e de alguém que cuide dele enquanto ela trabalha”, afirma. “Ao ficar em casa, sua única salvação é a inscrição no CadÚnico [Cadastro Único para Programas Sociais], como beneficiária de programas como o Bolsa Família, por exemplo. Qualquer renda adicional imediata virá do empreendedorismo.”

No final de outubro, Carolina Nascimento participou de um dos programas organizados pela Besouro, o curso “Meu Trampo”, financiado pela Prefeitura de São Paulo. O programa formou 8.345 pessoas, em 139 bairros da capital paulista. As mulheres foram a maioria dos alunos, 65%.

A reportagem acompanhou a turma de Carolina durante os cinco dias do curso. Foram 16 alunos que entraram na turma, com aulas ministradas na subprefeitura do Jabaquara, zona sul da capital. No dia da formatura, 14 concluíram -sendo 13 mulheres. Boa parte delas com dificuldades de dar início à fase de consultoria oferecida pelo programa (quando um profissional ajuda individualmente cada aluno a colocar ideias e contas em prática), por conta do trabalho invisível que assumem.

É o caso da confeiteira Shigeko Yamashiro, 53 anos. Ela é casada e não tem filhos. Fez um curso básico de confeitaria no Senac, em São Paulo, e começou a oferecer bolos e tortas para conhecidos, enquanto estava empregada na papelaria do cunhado. Mas há oito anos a papelaria fechou e ela passou a se concentrar na confeitaria. Mas sua produção é limitada.

“Eu não tenho quem me ajude. Faço as compras dos materiais, confecciono os produtos, limpo toda a sujeira e faço as entregas sozinha”, afirma. “Meu marido acha que ganho pouco e disse que se a gente dependesse dos meus bolos para sobreviver, passaríamos dificuldade”, diz Shigeko, casada com um motoboy de 60 anos.

“Eu tenho dificuldades em precificar e divulgar meus produtos, o curso me ajudou, mas eu preciso fazer a consultoria. Quero que a confeitaria garanta a minha renda, que eu possa viver disso. Mas não dá tempo: além de fazer todo o trabalho sozinha, ainda preciso cuidar da casa e fazer comida.”

Valdelice Santana dos Santos, 63 anos, também se sente de certa forma limitada. Viúva, cozinheira aposentada, ela ingressou no programa Meu Trampo e gostou. “Eu nunca tinha feito nada parecido”, afirma.

“Foi bom conhecer gente nova, me divertir um pouco”, diz ela, que tem dois filhos já adultos e cinco netos. Quando entrou no curso, nem sabia em que trabalhar, mas logo decidiu fazer uma das suas especialidades: cocada.

Logo se tornou fornecedora do mercado do bairro onde mora em Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo. Mas uma situação inesperada com a irmã mais nova, de 60 anos, a fez desacelerar. “Ela sofreu o segundo AVC pouco depois do curso. Ela é casada, tem filho, mas me sinto responsável por ela. Sou eu quem toma conta dela e não sobra muito tempo para produzir mais do que três dúzias de cocadas por mês”, diz.

Nem todas as empreendedoras de baixa renda, porém, se sentem cerceadas em seu potencial. Tamirys Brainer, 30, deixou há um ano um trabalho como assistente administrativa onde era vítima de assédio moral. Já havia começado a vender semijoias enquanto era empregada e tomou coragem para assumir a sua veia empreendedora. “Eu já tinha trabalhado como vendedora e sei que era boa nisso”‘, diz ela.

Em um ano como empreendedora, já consegue faturar cerca de cinco vezes o seu antigo salário. O curso do Meu Trampo a ajudou a entender, porém, que faturamento não é lucro e é preciso descontar todos os custos fixos da empresa que “usufrui” da infraestrutura da sua casa. “Estou fazendo a consultoria e já aprendi que é preciso considerar o gasto com internet, celular, transporte e com o meu próprio salário, entre outros custos, para saber qual o lucro da empresa”, diz.

Para o final de 2024, ela projeta estar ganhando o dobro. “É bem cansativo. Eu não tenho fim de semana, preciso estar sempre atenta às redes sociais e me deslocar até as clientes, que por enquanto estão no meu bairro”, diz Tamirys, que mora no Jabaquara, zona sul de São Paulo.

“Mas sei que eu posso crescer muito mais”, afirma a empreendedora, que conta com o apoio do marido, auxiliar de cozinha. Sem filhos, eles dividem todo o trabalho de casa.

DANIELE MADUREIRA / Folhapress

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