SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em tempos de inteligência artificial, traduzir pode parecer tão fácil quanto comandar o ChatGPT, mas profissionais do coletivo “Quem Traduziu” apontam que a tradução não se resume a trocar uma língua pela outra, até porque isso é uma tarefa literalmente impossível.
“Falar de quem traduziu não é só uma questão de reconhecer o trabalho da pessoa, mas também entender que isso faz diferença de fato no texto”, diz Rita Kohl, tradutora do japonês que integra o coletivo que se reuniu na última segunda, em São Paulo, para celebrar o Dia Internacional da Tradução.
Livia Deorsola, tradutora do espanhol, vê a impossibilidade de representar o original de forma exata como uma vantagem pois “é nela que se abre espaço para um trabalho de reimaginação e recriação”.
A tradução cumpre um papel de mediação entre um autor e um leitor que não falam a mesma língua. Para a mexicana Paula Abramo, que traduz para o espanhol, em seu trabalho “nada se mantém e tudo se recria”.
O trabalho de tradução é baseado no conhecimento de línguas e da linguística, em pesquisas e repertórios, mas Kohl acrescenta mais um ingrediente: o desconfiômetro. Foi seu avô paterno, também tradutor, que lhe ensinou a prezar pelo contexto e bom senso acima de uma transcrição fidedigna.
É nessas sutilezas que a inteligência artificial não consegue suprir a percepção humana. Lígia Azevedo, tradutora do inglês, vai além e afirma que a IA é inútil para a língua portuguesa, porque “a máquina não entende português”, ela apenas se adapta à cultura e a língua através de tradução literal.
As tradutoras concordam que a literalidade da IA vem influenciando a comunicação dos falantes de português, mesmo os nativos. O consumo de textos traduzidos literalmente demais do inglês tornou anglicismos cada vez mais comuns e imperceptíveis, principalmente na internet.
Anglicismo é o modo de falar próprio da língua inglesa, quando tomado como empréstimo por outra língua. No português, é mais perceptível no uso de palavras como cookie, gospel e freezer, mas também aparece em construções de frases e expressões aportuguesadas. Por exemplo, quando alguém afirma “aplicar para um emprego” (que no inglês seria “apply for a job”) em vez de se candidatar.
Essa tendência invisível surpreende as tradutoras do evento, que trabalham pela conservação da língua portuguesa.
Roberta Fabbri Viscardi é tradutora do inglês e conta que propunha em aulas uma apropriação consciente do inglês, do mesmo modo que é feito naturalmente com a língua nativa. Segundo Viscardi, cada pessoa tem seu próprio português, seu próprio modo de usar e entender a língua. Por isso, afirma que “quem traduz faz a diferença”.
Para Mariana Holms, tradutora do alemão, a tradução é baseada em uma relação de troca entre o autor do texto original e o profissional que o adapta. Ela conta que, enquanto traduzia poemas de Paula Ludwig, sonhava com os animais que a poeta austríaca descrevia.
A tradução extrapola o ofício para muitas das profissionais que estavam presentes ali para celebrá-la. Paloma Vidal, que começou traduzindo textos em português para os pais argentinos e se formou tradutora do espanhol, definiu a tradução como sua “condição existencial”.
ISADORA LAVIOLA / Folhapress