SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Cientistas, engenheiros e urbanistas já sabem qual é o roteiro para evitar que novos temporais provoquem um desastre tão grave quanto aquele que deixou mais de 160 mortos no Rio Grande do Sul, e que completa um mês nesta quarta (29).
O passo a passo da prevenção começa com estudos detalhados das áreas de risco no estado, passa pela elaboração de um plano de ação com as medidas mais e menos urgentes, e segue com a realização de obras e outras medidas de prevenção.
Em paralelo, as autoridades também precisam desenhar planos de contingência para que os órgãos públicos e a população saibam exatamente o que fazer quando vier a próxima chuva forte.
Os pesquisadores ouvidos pela Folha apontam que entre as principais lições das enchentes no Sul está a constatação de que é urgente mudar a maneira como ocupamos as bordas de arroios, córregos, rios e lagos. Em suma, significa mudar a forma como as cidades foram construídas ao longo do século 20.
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“Os cursos d’água sempre representaram um obstáculo à urbanização: as cidades cresciam, se desenvolviam, e quando chegavam na beira do rio e era canalizado, desviado, tamponado ou assoreado. E obviamente isso vai gerar um impacto”, diz o arquiteto e urbanista William Mog, pós-doutorando na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
Para os especialistas, margens de rios e outras áreas alagáveis terão de ser desocupadas, áreas verdes ampliadas, os diques e comportas que protegem a região metropolitana de Porto Alegre devem ter sua manutenção intensificada e o monitoramento climático e os sistemas de alerta para desastres aperfeiçoados.
A receita para o desastre das enchentes é conhecida há décadas pelos especialistas. A pavimentação de concreto e asfalto faz com que a água seja canalizada com mais velocidade, facilitando o transbordamento em vez de amortecer a chuva (o que é feito pela vegetação e pelo solo). Canalizações malfeitas, barreiras e aterramentos que se multiplicaram na capital Porto Alegre podem agravar o problema, empurrando a águas para áreas vizinhas.
Mog é assessor técnico na área de habitação e urbanismo do Ministério Público gaúcho. Ele diz que é necessário encarar rios e córregos “não mais como um obstáculo, mas como um principal parâmetro para se pensar a urbanização, ou seja, construir a cidade a partir do rio e respeitando o rio”.
Isso pode implicar, no casos mais drásticos, na remoção de bairros ou cidades quase inteiras. Essa medida já é discutida em municípios como Roca Sales e Muçum. À beira do rio Taquari, ambos foram atingidos por três temporais no último ano.
A remoção é uma solução extremamente cara que levará anos para ser concluída, sendo necessário começar pelas áreas de maior risco a inundações e deslizamentos. Segundo o engenheiro Carlos Tucci, professor aposentado do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS, pode custar ao menos R$ 20 mil por família.
Mais do que isso, é necessário garantir que essas regiões não sejam reocupadas de forma irregular como acontece com frequência por falta de acesso da população mais pobre à moradia.
“Fica muito claro que sempre a população de baixa renda é mais afetada, e isso chama atenção para um instrumento [de política pública] muito importante, que é a regularização fundiária”, diz a arquiteta Heleniza Campos, professora do Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional da UFRGS. “Muitas vezes essa regularização acaba se voltando contra a população, porque ela vai acabar ficando numa área inadequada para moradia.”
Outro consenso entre especialistas é que nada disso é realizado se os municípios trabalharem sozinhos, isolados. Como as bacias hidrográficas abrangem regiões inteiras, é necessário coordenar várias prefeituras para que os projetos funcionem.
Campos chama atenção para a necessidade de retomar o planejamento metropolitano que, segundo ela, foi sucateado nos últimos anos, culminando em 2017 com o decreto do fim da Metroplan, fundação que coordenava a integração de saneamento, ocupação do solo e transportes, entre outros serviços de Porto Alegre.
“Enxugando corpo técnico, reduzindo a capacidade de serviços e de manutenção da infraestrutura, você vai colocando a população numa situação de risco aos poucos”, diz a professora.
ALERTA CLIMÁTICO PRECISA SER DIDÁTICO, DIZ PROFESSOR
O professor Carlos Tucci espera que o desastre gaúcho sirva para colocar a gestão de inundações no centro do debate público brasileiro. Ele trabalha numa proposta de reforma dos sistemas de prevenção contra enchentes da capital gaúcha. O projeto inclui inspeções nos diques e comportas, recuperação do sistema antienchentes e revisão da infraestrutura da cidade.
“Até hoje não há acessos decentes para fora da cidade, e é preciso planejar para que hospitais, escolas e postos de saúde estejam em lugares seguros”, diz Tucci.
Já no monitoramento de chuvas e níveis dos rios, ele diz, há espaço para uma reformulação que traga informações mais críticas para os moradores. Idealmente, informações da previsão do tempo, da topografia, das áreas de risco e do nível dos rios seriam integrados para prever quais endereços têm mais chance de serem atingidos.
“No Brasil, temos previsão de chuva mas não do nível da água nos locais de interesse. Como alguém vai saber se com 100 mm ou 200 mm de chuva, o nível da água vai chegar na casa dele?”, questiona ele.
Esse monitoramento integrado é uma das mudanças mais difíceis de se alcançar, segundo o meteorologista Giovanni Dolif, coordenador-geral substituto de Operação e Modelagem do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais). “Os modelos não enxergam a formação de cada nuvem de tempestade”, ele diz.
Aumentar o número de locais monitorados está nos planos do Cemaden, responsável pelo principal serviço de alertas para o risco de inundações, deslizamentos e secas extremas no país hoje são pouco mais de 40 municípios gaúchos que recebem o serviço do órgão federal, embora o trabalho seja complementado por serviços estaduais e municipais.
Dolif também cita a necessidade de treinamento de equipes nos municípios e melhoria dos dados que são coletados pelo governo. “É preciso de capacitação. Tem muitos municípios que não sabem direito o que fazer quando chegam os alertas, alguns sequer têm Defesa Civil. Os municípios precisam se estruturar.”
O governo estadual do Rio Grande do Sul afirmou que, atualmente, mais de 270 municípios gaúchos têm planos de contingência que detalham procedimentos em caso de desastres. Afirma também que estão em andamento melhorias nos sistemas de monitoramento, com a instalação de um radar meteorológico que em fase final de implementação.
“Foram investidos mais de R$ 25 milhões no serviço que irá monitorar a região metropolitana de Porto Alegre e mais um raio de 150 quilômetros”, diz o governo gaúcho.
A gestão Eduardo Leite (PSDB) também afirma que pretende modernizar seus sistemas de monitoramento de eventos climáticos extremos.
“Para os casos de situações climáticas, em que a gravidade não tinha precedentes, o governo iniciou um mapeamento de novas tecnologias e sistemas utilizados em outros estados e países, para verificar a viabilidade da implantação em território gaúcho o mais breve possível”, disse o governo, em nota. “De 2023 a 2024, o Estado empenhou R$ 579 milhões em recursos para o enfrentamento a desastres naturais em diversas frentes.”
O governador também anunciou a criação do Comitê Científico de Adaptação e Resiliência, para “colaborar no desenvolvimento de estudos, propostas e soluções em diversas frentes de trabalho” de adaptação do estado a mudanças climáticas.
TULIO KRUSE / Folhapress