SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Advogados da área tributária avaliam que a medida provisória que limita a compensação de créditos tributários gerados por decisões judiciais não pode retroagir para prejudicar contribuintes que possuem valores a receber do governo.
Há discussões, no entanto, sobre quais empresas estariam protegidas da mudança na legislação anunciada no final de 2023 para aumentar a arrecadação: somente quem entrou com pedido de compensação até o ano passado, todas as que obtiveram o direito ao ressarcimento na Justiça ou também aquelas que possuem ações que ainda não transitaram em julgado.
Alguns advogados definem a medida como confisco, empréstimo compulsório ou calote.
O alvo do governo são as grandes empresas que se beneficiaram da decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de 2021 na chamada tese do século, que trata da exclusão do ICMS da base de cálculo das contribuições federais PIS/Cofins.
Nesse caso, empresas que pagaram tributos a mais no passado ganharam o direito de descontar esses valores daquilo que é devido ao governo federal ou receber a restituição por precatório.
O Ministério da Fazenda propôs parcelar o uso desse abatimento quando o valor superar R$ 10 milhões. A norma, publicada no final de 2023, está em vigor de forma provisória e precisa do aval do Congresso para se tornar definitiva.
Na sexta-feira (5), o Ministério da Fazenda publicou portaria que estabelece os limites mensais para compensação de créditos tributários acima desse valor em um período de 12 a 60 meses, a depender do montante envolvido.
Durante o anúncio das medidas em dezembro, o secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, afirmou que as decisões judiciais que ficaram acima desse patamar representaram R$ 35 bilhões em créditos tributários no ano passado.
Ele disse que a restrição poderá representar uma arrecadação de cerca de R$ 20 bilhões a mais em 2024.
Flávio Paranhos, sócio do Veirano Advogados, afirma que a decisão não poderia alcançar contribuintes que possuem decisões definitivas e já entraram com pedido de compensação junto à Receita Federal.
Segundo ele, em 2009, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) decidiu que a lei que regula a compensação tributária é aquela vigente na data do chamado encontro de contas (Tema 345).
Em 2011, a PGFN (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional) definiu esse encontro de contas como o momento da entrega da primeira DComp (Declaração de Compensação) ao Fisco, que traz o valor total pago a mais ao governo.
“Não há direito adquirido na compensação, ela vai seguir a norma do momento”, afirma Paranhos. “O ponto é que, quando a gente fala de encontro de contas, a própria Procuradoria da Fazenda, seguindo o entendimento do STJ, diz que esse momento é a apresentação da primeira declaração de compensação.”
Segundo o tributarista, a Receita não deve aceitar novas compensações com base nesse argumento, o que obriga as empresas a recorrerem ao Judiciário.
O escritório Mattos Filho avalia que a limitação pode ser questionada na Justiça pelos contribuintes, inclusive em razão de a restrição trazida possuir características de empréstimo compulsório.
Eduardo Melman Katz, sócio da área de tributário do escritório, avalia que a restrição à MP é mais ampla e cita a impossibilidade de aplicação para créditos de ações ajuizadas antes da nova norma, em linha com manifestações do STJ em situações análogas.
“Os créditos decorrentes de ações ajuizadas antes da MP não poderiam ser atingidos. A medida provisória e a portaria não trazem essa ressalva de forma expressa, de forma que muitos contribuintes certamente vão ingressar em juízo buscando preventivamente assegurar o direito de seguir compensando normalmente os seus créditos”, afirma o Katz.
David Andrade Silva, tributarista e sócio da Andrade Silva Advogados, também diz que a medida não deveria alcançar ações que já foram ajuizadas, mesmo nos casos que ainda não têm decisões definitivas.
A decisão do STF sobre a tese de século se deu em uma ação específica, que teve repercussão geral e deve ser aplicada a todos os outros casos que tramitam no Judiciário. Silva afirma que muitas ações ainda não transitaram em julgado.
“A empresa percorre anos no Judiciário e, quando vai compensar, vem essa medida do governo de limitar a compensação no tempo e em percentuais. É um verdadeiro calote. Vai gerar uma judicialização enorme.”
Thiago Barbosa Wanderley, sócio do Salles Nogueira Advogados, afirma que a medida do governo representa duas afrontas à Constituição ao ir contra o direito adquirido e o princípio da legalidade.
Para o tributarista, a portaria não pode limitar a compensação de quem já tem ações que transitaram em julgado, mesmo que a declaração de compensação não tenha sido apresentada ainda.
“O governo está limitando a utilização de um crédito que já foi transitado em julgado. Está obrigando a empresa a colocar a mão no bolso para pagar uma dívida, quando ela ainda tem um crédito substancial contra a União. Essa medida certamente vai ser alvo de uma corrida para o Judiciário.”
O escritório Machado Meyer diz que existem argumentos sólidos para questionar essa restrição em reaver valores recolhidos indevidamente para o fisco e que a alteração viola a coisa julgada e pode configurar possível confisco.
Bruna Miguel, sócia da área tributária do Machado Meyer, afirma que a MP não deixa claro qual será o alcance da restrição.
“A portaria teve o condão apenas de dispor sobre o limite mensal mínimo que deverá ser observado pelo detentor do crédito para fins de compensação, não tendo tratado sobre a questão relacionada ao alcance dos efeitos dessa restrição, o que ainda poderá ser objeto de regulamentação por ato da Secretaria Especial da Receita Federal”, afirma.
Segundo o Ministério da Fazenda, o objetivo da medida é resguardar a arrecadação federal ante a possibilidade de utilização de créditos bilionários para a compensação de tributos.
A expectativa da pasta é que em 2023 a marca de R$ 1 trilhão em débitos compensados nos últimos cinco anos tenha sido ultrapassada.
Quase 40% das compensações feitas desde 2019 envolveram decisões judiciais, sendo que 90% se referem à tese do século.
EDUARDO CUCOLO / Folhapress