SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando rádios do Amazonas e de Roraima anunciaram o assassinato de um grupo de yanomamis composto por crianças e mulheres, alguns empresários de garimpo e pistoleiros correram para sair de cena.
O país começava a saber, em 18 de agosto de 1993, do massacre de Haximu, o primeiro –e, até agora, único– caso de genocídio reconhecido pela Justiça brasileira, com 16 mortos. A última decisão foi proferida em 2006 pelo STF (Supremo Tribunal Federal). Liderados no ataque por Pedro Garcia, conhecido como Prancheta, os garimpeiros foram para Boa Vista, e a maioria conseguiu fugir.
Além de Prancheta, que confessou o crime, seriam condenados Juvenal Silva, o Cururupu, Francisco Alves Rodrigues, de apelido Chico Ceará, João Pereira de Moraes (João Neto) e Eliézio Monteiro, preso somente no ano passado.
A circulação de notícias e o sumiço da maior parte dos suspeitos aconteceram um mês depois do massacre, que deixou 16 mortos na aldeia Haximu, na fronteira entre Brasil e Venezuela, no ano seguinte à demarcação da Terra Indígena Yanomami.
O episódio foi brutal, segundo os autos e documentos da época, como um relato do antropólogo francês Bruce Albert, 71, incorporado ao processo. As vítimas foram majoritariamente mulheres, crianças e idosos, já que a maior parte dos homens se dirigia a uma festa em outra comunidade.
As pessoas foram surpreendidas e mortas a tiros e golpes de facão. Em um dos depoimentos, Japão, um dos garimpeiros, conta que outro deles, Goiano Doido, enrolou uma criança num pano e a transpassou com uma faca. Um primeiro pedido de apuração foi feito em 17 de agosto à Fundação Nacional da Saúde pela irmã Aléssia, religiosa que trabalhava num posto da Funai em Xidéia. Os sobreviventes chegaram a uma maloca na região do Toototobi, no Amazonas, em 24 de agosto.
Para Albert, que chegou junto com Davi Kopenawa à região para ajudar os investigadores com a tradução do yanomami, aquela era uma tragédia anunciada no começo da segunda onda de invasão de garimpeiros.
“A primeira aconteceu nos anos 1970, por causa de cassiterita, e nos anos 1980, já não era algo artesanal. Eram pequenas empresas de mineração que podiam capitalizar e mecanizar os garimpos.”
“Foram dias e dias de depoimentos e entrevistas com o delegado da Polícia Federal Raimundo Cotrim, que instalou uma delegacia debaixo de uma mangueira na missão Toototobi, com uma mesa e uma máquina de escrever. Foi isso que permitiu construir um documento jurídico sólido.”
Trinta anos depois, a Terra Indígena Yanomami é a mais populosa do país entre as demarcadas, segundo o Censo 2022, com 27.152 habitantes. O massacre escancarou problemas que se tornaram mais complexos, como a expansão do garimpo e a rede de atividades ilegais associada ao crime organizado.
O missionário Carlo Zacquini, 86, teve pesadelos por muitos anos após testemunhar sucessivas crises que atingiram os yanomamis desde quando começou a trabalhar com a etnia, em 1965. Estava fora de Roraima quando soube que as pessoas recém-chegadas à maloca do Marcos, em 24 de agosto de 1993, tinham chumbo em diversas partes do corpo.
“Um deles havia sido atingido bem perto do ouvido, haviam acertado a mandíbula, ele estava com dificuldade de mastigar. Foi removido para Boa Vista para retirar os restos.”
Já em setembro, ele acompanhou uma comitiva de parlamentares que foi verificar a situação no Toototobi, e fez uma das principais fotos dos sobreviventes, que seguram as cabaças com restos mortais.
“Alguns parlamentares alegavam que as cicatrizes de chumbo daqueles sobreviventes podiam ter sido feitas por algum funcionário da Funai com cigarro, coisas desse tipo. Imagine.”
Em outubro daquele ano, Bruce Albert relatou os capítulos que levaram ao massacre em artigo na Folha de S. Paulo.
Após um ataque matar quatro yanomamis, a comunidade deixou as duas malocas de Haximu para se refugiar em um acampamento. Em retaliação, indígenas mataram um garimpeiro e feriram outro.
Um bando de 15 homens, liderados por Pedro Prancheta, chegou ao local numa manhã de julho e matou e esquartejou 12 pessoas das 19 que estavam ali, sendo um homem e duas mulheres idosas, uma visitante de Homoxi, aldeia aliada, cinco meninas –três adolescentes, uma de um ano e outra de três- e três meninos entre seis e oito anos. A maior parte dos homens estava em uma festa na maloca do Simão, em uma comunidade aliada dos Haximu.
Sobreviventes como Paulo Yanomami, que havia escapado do ataque anterior, fugiram para a mata. Depois do tiroteio, contaram do massacre para um grupo de mulheres que havia saído para coletar frutas, e os homens que estavam na festa chegaram ao local à noite.
Começaram ali a queima de alguns corpos para o funeral, e terminaram o trabalho, em meio a terror e choro em um abrigo na mata. Como manda a tradição, os ossos seriam pulverizados ao longo do êxodo dos sobreviventes pela floresta, em busca de aldeias amigas.
Para o pesquisador do Instituto Socioambiental, Marcos Wesley de Oliveira, a disputa em torno de Haximu reflete uma disputa política. “A Venezuela também foi condenada, e houve reconhecimento da Justiça brasileira e do governo venezuelano. Parece óbvio, mas vemos coisas como, em uma das sessões da CPI das ONGs, o senador Hiran [Gonçalves (PP-RR)], disse que não havia acontecido.”
À reportagem, o senador reiterou a posição declarada em julho, e disse que atuou no caso como legista da Funasa. “Queria que quem diz que houve, que diga onde foram enterrados, quem fez a necrópsia e quais eram os nomes. Na época, vimos que a maloca nem no Brasil era.”
Para Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça e procurador da República no MPF (Ministério Público Federal) na época da demarcação da TI Yanomami, o caso, que permanece único, só foi finalizado por causa da publicidade na época. Além disso, foi importante, segundo Aragão, que o STJ (Superior Tribunal de Justiça) tenha reiterado o entendimento do caso como genocídio, destinando o julgamento a um juiz singular, e não do júri popular. “Nesses casos, é quase sumária a absolvição.”
Em 2011, a Justiça considerou as penas extintas, e eles foram soltos. Pedro Prancheta foi preso em 2018 numa operação contra a mineração ilegal na TI Yanomami.
LUCAS LACERDA / Folhapress