SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Correr pelado, como alunos da Unisa (Universidade Santo Amaro) foram flagrados durante a competição universitária Calomed, em abril, não é um ato isolado nas universidades de medicina.
Médicos e alunos da área dizem que os atos obscenos podem ter sido impostos aos alunos por veteranos e que clima de hostilidade pode contribuir para a normalização de assédios e perpetuação da hierarquia violenta nas universidades de medicina.
A médica psiquiatra Elisa Brietzke, 49, se formou em 1996 em uma faculdade federal no Sul do Brasil. Ela lembra que, quando ingressou na universidade, foi submetida a trotes que sexualizavam as calouras e tinham cunho vexatório.
Depois da faculdade, foi professora em faculdades federais em São Paulo e avalia que, em terras paulistas, além dos trotes mais agressivos, há ainda uma rivalidade forte entre as escolas de medicina.
Brietzke ingressou na universidade com 17 anos sem compreender ao certo o que era um ambiente machista. Mesmo assim, percebeu no primeiro dia que não era normal.
Hoje, ela percebe que desde muito cedo na universidade é normalizado ser tratado de acordo com a posição hierárquica. “Também, desde muito cedo, é normalizada a ideia de que se você for uma mulher vai sofrer algum tipo de abuso sexual, desde casos extremos a comentários e toques inadequados.”
A normalização facilita a perpetuação desse ambiente hostil, reflete a médica, já que as pessoas que estão no topo da hierarquia das universidades também costumam estar no topo dos hospitais.
Ou seja, são essas pessoas que decidem, por exemplo, se o aluno vai entrar no corpo clínico do hospital quando se formar ou se vai integrar a escala de um plantão lucrativo. “A medicina é uma profissão em que você depende da indicação de colegas e das relações sociais estabelece na faculdade”, afirma.
Hoje, há mudanças nas diretrizes de universidades, como a proibição da venda de álcool em bares e da realização de trotes violentos, porém Brietzke afirma que, devido a essa proibição, as atléticas acabam se afastando da administração das cidades, o que dificulta o controle.
“As atléticas se tornaram organismos independentes e lucrativos, em que as pessoas pagam para fazer parte e elas organizam esses jogos universitários, que foi o que aconteceu no caso da Unisa, longe dos olhos das universidades, da administração das universidades”, diz.
Ela concorda que alunos como os da Unisa, que aparecem nus durante a partida feminina de vôlei, podem ser vítimas de uma cultura de submissão. Porém, o caso também configura violência às mulheres que estão em quadra: “Ninguém vai lá e mostra o órgão sexual enquanto eles estão jogando”, diz ela.
Outras quatro pessoas que cursam medicina em diferentes faculdades do estado de São Paulo e três médicos relataram, sob condição de anonimato, que o histórico de agressões ainda existe nas universidades.
Segundo eles, trotes mais pesados, hoje, se concentram em faculdades localizadas no interior, uma vez que a maioria dos alunos está longe da família e vê na faculdade seu único elo.
Uma médica que ingressou em uma universidade federal em 2007 relata que é comum que o aluno que se recusa a fazer parte dos trote e humilhações fique marcado e seja malvisto.
Durante os anos de universidade, ela lembra que teve que ajoelhar no milho, socar os rins de colegas e que também era comum um desfile de calouros nus. Porém, diz que grande parte destas agressões foi cessando ao longo da graduação e que acredita que suas calouras não sofreram tanto quanto ela.
Uma das calouras que estudou com esta médica lembra que viu garotos nus em jogos, mas acredita que a situação está mais controlada hoje em dia.
Outra médica, recém-formada em uma universidade particular no litoral de São Paulo, relata que ingressou no curso em 2016 e que teve que ir às primeiras festas com roupas largas e cabelo preso, mas nunca aceitou beber cachaça imposta por veteranos ou fazer qualquer outra coisa de que não tivesse vontade.
Porém, ela relata que colegas foram obrigados a organizar uma festa, mas não podiam comprar nenhum produto e eram incentivados a furtar.
Na Faculdade de Medicina da USP, não há trotes desde 1999, quando o calouro Edison Tsung Chi Hsueh, que tinha 22 anos, morreu afogado em uma piscina durante um evento de recepção de calouros.
Após o episódio, uma lei estadual foi aprovada proibindo trotes violentos que coloquem em risco a saúde e integridade física dos calouros.
Uma estudante de medicina do sexto ano conta que, ao ingressar na universidade, tinha receio de ser agredida pelos veteranos, mas isso nunca aconteceu.
Atualmente, há um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados, proposto pelo senador Jorge Kajuru (PSB-GO), que busca proibir qualquer tipo de trote universitário violento. O projeto prevê que as instituições adotem medidas preventivas para combater esses trotes.
EXPULSAR NÃO TEM CARÁTER EDUCATIVO, DIZ PSICÓLOGA
A Unisa chegou a anunciar a expulsão de ao menos 15 estudantes flagrados no vídeo da Calomed, mas teve de readmiti-los após decisão da Justiça Federal, que entendeu que não foi garantido direito à ampla defesa.
A Folha de S.Paulo tentou contato com estudantes por meio de três advogados, porém nenhum concordou em conceder entrevista. De forma geral, a defesa deles sustenta que eles foram obrigados a tirar a roupa no contexto de imposições e trotes praticados por veteranos contra calouros.
A decisão de expulsar alunos é criticada pela psicóloga Liliana Seger, que classifica os alunos expulsos como bodes expiatórios.
“Mandar alunos embora, na verdade, não resolve nada em termos de mudança de comportamento da sociedade. Precisa mudar essa mentalidade de machucar as pessoas”, diz ela.
A psicóloga afirma que muitos dos relatos de alunos da medicina mostram que o trote que deveria ser um momento de integração se transforma em uma submissão ao recém-ingressados. “Não dá para minimizar isso. Esse cenário está normalizado, mas não significa que seja uma coisa bacana.”
ISABELLA MENON / Folhapress