Tubulação suspensa coleta esgoto de palafitas em Manaus

MANAUS, AM (FOLHAPRESS) – No cenário urbano de Manaus, a mais populosa cidade da Amazônia, sétima do Brasil, milhares de pessoas vivem em palafitas, moradias tradicionais de áreas de várzea, sustentadas por estacas cravadas no solo— que, quando não está alagado, fica coberto de lixo e dejetos de todo tipo. Manaus cresceu 14,5% de 2010 a 2022, mais que o dobro da média nacional, de 6,5%. Teve também o maior aumento de áreas de favelas no Brasil entre 1985 e 2022 (14 mil hectares), segundo o MapBiomas.

Na capital amazonense, a elevação das redes de água e esgoto por meio das chamadas redes suspensas é a aposta para mudar o cenário precário do saneamento básico em comunidades de palafitas como o Beco Nonato, no bairro Cachoeirinha, zona Sul da capital, onde mora a empregada doméstica Aldineia Ramos Reis, 52. É a primeira área de palafitas a receber esse tipo de estrutura no país.

Por ocuparem áreas suscetíveis à variação no nível da água na cheia e seca, esses aglomerados urbanos convivem com todo o lixo carregado pelos igarapés, que cortam uma cidade em que menos de um terço da população tem acesso à rede de esgoto. De acordo com o Ranking do Saneamento 2024 do Instituto Trata Brasil, que leva em conta dados do Snis 2022 (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento), Manaus é a 86ª pior cidade do país no ranking do saneamento básico, com apenas 26% da população com coleta de esgoto.

Quando se mudou para lá, o abastecimento de água na casa de Aldineia vinha de canos clandestinos enterrados na lama. “A gente colocava uma meia na boca da torneira para filtrar as sujeiras”, lembra ela, que hoje tem acesso à água encanada por meio da tubulação suspensa, que fica presa às pontes de madeira construídas entre as casas.

O esgoto demorou mais para chegar. Só no início de 2023 a casa de Aldineia passou a ser conectada à rede suspensa de esgoto, ligada ao sanitário e à pia da cozinha. Antes, a água da pia e as fezes eram despejadas diretamente no igarapé que corre por debaixo da casa dela –assim como faziam todos os vizinhos.

“O cheiro era insuportável. Muitas vezes a gente nem conseguia abrir a janela por causa do odor. De manhã, quando ia estender roupa no varal, eu via as fezes boiando no igarapé e aquilo ali já estragava o café da manhã”, afirma ela, que paga uma taxa social de R$ 10 por mês pelo serviço de água e esgoto.

As fezes humanas saíram da paisagem, mas o visual não mudou muito: os moradores ainda convivem com dejetos lançados por residências que ficam no entorno das palafitas, além dos trazidos pelas redes de águas pluviais e pelo próprio igarapé que corta a comunidade e que integra a microbacia do Igarapé Mestre Chico, um dos mais importantes –e poluídos– de Manaus.

Nem todas as residências estão 100% conectadas à rede de esgoto. Na de Maria Selma Siqueira Cavalcante, 58, dona de casa, apenas o vaso sanitário está ligado à rede, mesma situação de outros moradores do Beco. “Melhorou muito porque era horrível, e quando chovia o cheiro piorava. Mas ainda tem muito dejeto despejado pelas pias, sem falar no lixo que vem do igarapé e que as próprias pessoas jogam, em vez de levar na lixeira comunitária”, disse.

Além do mau cheiro, as doenças de veiculação hídrica, como diarreia, ainda são uma preocupação para os moradores, conta a cozinheira Guilhermina Souza, 41. “Já foi pior, antes da tubulação de esgoto, porque quando tinha um vazamento nos canos de água, misturava água com fezes, e era muita doença. Melhorou, mas ainda vivemos no meio do lixo e do esgoto que vem de outros lugares, trazidos pelo igarapé, principalmente quando chove forte”, reclamou.

Para Gisele Dantas, 45, líder comunitária do Beco Nonato, o acesso à água e a coleta de esgoto mudaram a vida dos moradores. Mas é preciso envolver outros órgãos públicos para melhorar serviços como a infraestrutura, energia elétrica e coleta de lixo, além de expandir a rede de esgoto para outras áreas da cidade. “Ainda falta infraestrutura. Esse é um problema que afeta todos os nossos igarapés, e enquanto não cuidarmos de todos os pontos, a contaminação vai continuar chegando aqui”.

A concessionária Águas de Manaus, que assumiu o sistema em 2018, afirma que a cobertura já chegou a 30% da cidade –os dados do Trata Brasil não mostram esse aumento. A empresa, que iniciou em janeiro de 2023 a operação da rede suspensa de esgoto no Beco Nonato, atendendo mais de 900 pessoas, afirma que a implantação reduziu em 67,5%, entre setembro de 2022 e novembro de 2023, a demanda bioquímica de oxigênio (DBO), indicador usado para medir a poluição.

A estratégia, premiada pela ONU, deve ser replicada em pelo menos outras 50 áreas de palafitas, onde 2.400 metros de tubulações estão sendo instalados. A empresa deve investir mais de R$ 2 bilhões para alcançar a universalização do serviço até 2033, como estabelece o Marco Legal do Saneamento, diz o diretor-presidente da Águas de Manaus, Diego Del Magro.

Para ele, o crescimento populacional de Manaus se reflete na desaceleração dos indicadores do saneamento básico. “Em cinco anos, expandimos em 175% a rede de esgoto, mas esses avanços não aparecem nos indicadores porque o crescimento populacional é muito relevante. É um desafio para a infraestrutura urbana e, consequentemente, para o saneamento”, afirma. Assim como os problemas estão interligados, as soluções também, diz. “Manaus tem pelo menos 150 igarapés. A despoluição e recuperação deles envolve vários fatores, e o esgoto é só um deles. Há também a questão da coleta do lixo, a proteção da vegetação ciliar, a conscientização ambiental.”

Déficit histórico

Para o geógrafo e doutor em geografia humana Isaque de Sousa, o desafio do saneamento básico em Manaus é resultado de um déficit histórico de investimentos em infraestrutura urbana, que nunca acompanharam o crescimento populacional da cidade.

“Manaus é uma cidade que cresce de modo acelerado em razão do Polo Industrial de Manaus, que continua atraindo pessoas de outras regiões e países, que vêm para cá para ‘morar como podem’. Esse crescimento é bem superior ao da infraestrutura, e temos como consequência mais favelização. Além disso, somos uma região entrecortada por rios, com uma cultura, da práxis brasileira, de não cuidar dos cursos d’água urbanos”, diz Sousa.

O histórico dos Censos do IBGE confirma esse boom populacional pós-Polo Industrial de Manaus, criado em 1967: em 1960, Manaus tinha 175 mil habitantes. Em 1970, eram 311 mil; no Censo de 1980 tinha 633 mil e, em 1990, chegou a 1,1 milhão. Entre os Censos de 2010 e 2022, a população cresceu mais de 15%, fazendo de Manaus a primeira cidade amazônica com população superior a 2 milhões de pessoas.

“É muito importante urbanizar esses espaços, levando água, esgoto, energia elétrica, mas é preciso dar condições para que essas pessoas permaneçam, sobretudo com concessão de crédito e financiamentos, ou elas vão sair de lá e iniciar esse processo de degradação em outro lugar”, afirma Sousa.

MONICA PRESTES / Folhapress

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