Uber, sinônimo da nova era do trabalho, completa 10 anos no Brasil

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ele foi classificado como ilegal pela prefeitura da maior cidade da América Latina, tornou-se alvo de protestos violentos, despertava receio entre os usuários mais preocupados com segurança. Dez anos depois, está consolidado como principal serviço de transporte por automóveis nas metrópoles do país.

O aplicativo Uber completa, neste mês, uma década de atividade no Brasil. Conquistou posição confortável em termos financeiros e presença no mercado, mas passou seus primeiros anos na clandestinidade.

Chegou a ser proibido pelos vereadores de São Paulo. Seus primeiros motoristas sofreram com apreensões de veículos e multas de milhares de reais. O serviço, no entanto, continuou sendo oferecido e só crescia no país, a ponto de as autoridades -municipais e federais- dobrarem-se à percepção de que regulamentar era inevitável.

Hoje, a empresa está presente em mais de 500 cidades brasileiras, tem mais de 30 milhões de passageiros cadastrados e mais de um milhão de motoristas -os números são de 2022, os mais recentes divulgados.

A qualidade do serviço, no entanto, decaiu com o passar dos anos. No início, era visto como um serviço de carro de luxo, no qual o motorista oferecia água e balinhas aos passageiros e perguntava se a temperatura do ar-condicionado estava boa.

Atualmente, não há mais os mimos e até o ar-condicionado passou a ser cobrado à parte do usuário no Rio de Janeiro. O governo estadual, porém, reagiu com a proibição das cobranças extras e exigiu que todos os veículos circulassem com o ar-condicionado ligado.

Mais do que o principal nome do transporte por aplicativo, Uber transformou-se em sinônimo da maior mudança nas relações de trabalho das últimas décadas. O avanço do trabalho informal, com prestação de serviços intermediada por aplicativos de celular, passou a ser conhecido como “uberização”.

Na mobilidade urbana, a popularização do Uber significou o declínio dos táxis e a intensificação do uso dos automóveis nas cidades. Isso não implica necessariamente em mais carros nas ruas -a frota paulistana, que hoje é de 6,2 milhões de automóveis, cresceu no período, mas em ritmo menor do que nos dez anos anteriores- e sim que eles passaram a ficar menos tempo parados em vagas de estacionamento.

“Cada automóvel pode ser muito mais usado, e inclusive isso tem a ver com a demanda menor de automóveis, porque tem muitas viagens feitas para o mesmo carro”, explica o engenheiro Mauro Zilbovicius, professor da Escola Politécnica da USP (Universidade de São Paulo).

Embora seja inviável para a maior parte da população usá-lo no trajeto de casa ao trabalho, o carro de aplicativo se firmou como opção para outros tipos de deslocamento. Segundo Zilbovicius, é o caso da “última milha” -a distância entre uma estação de metrô e o destino final, por exemplo- que poderia ser percorrida de bicicleta, a pé ou com o velho táxi.

Outro foco da empresa são situações em que dirigir é inconveniente ou em que esbarram em proibição (no caso de consumo de álcool) -shows, viagens rápidas ao comércio, emergências, happy hours.

Aplicativo cresceu na onda do desemprego

A ascensão do Uber no Brasil coincidiu com um período de queda nas vagas formais de emprego. Tornou-se então uma alternativa de renda popular para batalhões de trabalhadores, qualificados ou não.

Segundo especialistas ouvidos pela Folha, há duas consequências desse fenômeno. Uma para a segurança no trânsito, e outra para os direitos trabalhistas.

O número de motoristas parceiros da Uber aumentou exponencialmente ao longo dos anos, e na mesma medida aumentou a quantidade de veículos que oferecem caronas remuneradas. Apesar disso, a manutenção desses carros -sistema de freios, suspensão, faróis, pneus carecas etc- não é fiscalizada com a mesma atenção que os táxis sempre receberam.

“A empresa se isenta de qualquer responsabilidade pelo transporte, não há seguro para terceiros em caso de acidente, não se exige que o veículo tenha a manutenção fiscalizada -coisa que se exige dos táxis”, diz o advogado Maurício Januzzi, especialista em legislação de trânsito. “Essas regulamentações foram deixadas de lado.”

A segunda consequência é que as regras de remuneração dos motoristas, e o preço cobrado dos passageiros, são controladas somente pela empresa. No táxi, a cobrança da bandeirada e dos valores pagos por quilômetro e minuto em viagem são tabelados pela prefeitura.

“Ninguém sabe a estrutura de custos”, diz Zilbovicius. “Tenho a impressão de que o valor que a empresa cobra fazendo essa intermediação [de viagens] é muito grande, e o custo disso é muito baixo.”

Essa mesma impressão fez com que motoristas reagissem. O primeiro protesto ocorreu em 2016, menos de um ano depois da chegada da modalidade Uber X. No ano passado, houve novas paralisações contra as regras de pagamento.

Quando esses serviços estrearam em São Paulo, havia uma composição de preços fixa, baseada em valor inicial e cobranças por quilômetro rodado e minutos de corrida -além da tarifa dinâmica, que cobra mais dos passageiros quando há maior demanda.

A metodologia para determinar os preços, porém, mudou nesse período, o que impede uma comparação precisa entre o valor cobrado há dez anos e agora. Já a variação de tarifas dos táxis, determinada por decreto pela prefeitura, ficou abaixo da inflação no período.

O motorista Rosemar Pereira, 51, testemunhou de perto as mudanças que a plataforma trouxe. Ele era taxista até 2016, quando percebeu que a mudança no hábito dos clientes era inevitável e decidiu trabalhar apenas com aplicativos de carona, especialmente o Uber, modalidade Black (mais cara).

Há oito anos na atividade, ele conta que, para conseguir um rendimento equivalente ao que obtinha no começo, hoje precisa trabalhar até quatro horas a mais por dia. “Hoje o motorista de aplicativo não tem condições nem de trocar o carro, nem de fazer manutenção. Os custos aumentaram muito e o nosso repasse, nada. A remuneração do motorista é cada vez menor”, conta Pereira.

A situação é mais grave para aqueles que trabalham com carros alugados ou financiados. Nesse caso, ele diz, gasta-se até R$ 90 mil por ano, e esse valor é acrescido aos custos de manutenção e gasolina.

“Os ganhos na plataforma da Uber são bem particulares para cada motorista parceiro, já que cada um escolhe como quer usar o aplicativo com autonomia e flexibilidade”, disse a Uber, em nota. “Como os parceiros têm liberdade para decidir em quais dias e horários preferem dirigir, quem concentra a atividade no app em dias e horários de maior movimento tem maior probabilidade de realizar mais viagens e, consequentemente, ter mais ganhos.”

A empresa enviou à Folha de S.Paulo uma pesquisa publicada pelo Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) que, no ano passado, calculou que a renda dos motoristas, já descontados custos, pode variar entre R$ 2.925 e R$ 4.756 por mês por quem trabalha cerca de 40 horas semanais. A Uber também afirmou que “defende publicamente a necessidade de uma nova regulação para permitir a inclusão dos trabalhadores por aplicativo na Previdência Social”.

Voltar à vida de taxista não é opção. Colegas e parentes de Pereira perderam muitos clientes, conta ele. Deixar o ofício de motorista de aplicativo também se torna cada vez mais difícil conforme os trabalhadores ficam mais endividados.

“Há diversos perfis de motoristas. Há aqueles que utilizam a plataforma como sua principal fonte de renda; outros têm trabalhos formais e utilizam como uma complementação -trabalhando esporadicamente, dia sim, dia não, dois dias na semana, ou apenas para ir e voltar do trabalho”, diz o motorista Fernando Morgato, que também é graduando em sociologia e política, sobre a dificuldade de organizar a categoria.

“O motorista está preso a uma cadeia de fatores e a uma rede de endividamento (na maioria das vezes com o nome sujo) o que faz com que ele não consiga sair; e mesmo que saia, ele sairá mais endividado de que quando entrou”, diz Morgato.

TULIO KRUSE / Folhapress

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