Último filme de Paul Vecchiali é carta doce e melancólica ao cinema

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O último filme é um evento raro no cinema. A morte vem para todos, mas nunca sabemos quando ela virá. Essa imprevisibilidade dificulta despedidas em uma arte de processo tão longo, e no geral as telas vivem dos fins súbitos. São os últimos trabalhos, aqueles em que o artista se dedicava antes de fazer a passagem.

Paul Vecchiali foi um dos raros nomes a fugirem à regra. O cineasta francês, morto em janeiro, aos 92 anos, terminou logo antes o filme “Bom Dia à Linguagem”. O projeto passa agora na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, depois de estrear em Locarno, e se percebe que o longa foi pensado como uma despedida.

A começar pela própria figura de Vecchiali, que protagoniza a história ao lado de Pascal Cervo. O diretor, com muita consciência, filma a si mesmo em uma posição de fragilidade. Ele aparece na tela sempre sentado, vestindo um sobretudo que engole seu corpo, e a pele fina do seu rosto revela a saúde delicada. O chapéu e o cachecol denotam que ele interpreta a si mesmo na trama, sob o manto de outro personagem.

O cineasta também chora muito ao longo de “Bom Dia à Linguagem”, que tem como premissa um reencontro de pai e filho. O filme é feito em três longas conversas entre os dois personagens em uma tarde, em que buscam se reconciliar após passarem tantos anos afastados.

A lógica de cena, simples e impecável, faz da lenta aproximação dos dois um passeio entre plano e contraplano. No papel do filho, Cervo começa a história distante de Vecchiali, dando passos nervosos e hesitantes enquanto recita suas falas ao diretor sentado à cadeira. Seus ânimos acalmam na segunda parte, um almoço, e quando chega o clímax ele já está unido ao cineasta na imagem.

A discussão, enquanto isso, acontece até que as palavras ditas entre os dois se esgotem, literalmente. O longa é um acerto de contas que começa nos personagens e termina na relação de Vecchiali com o cinema, tudo isso ao mesmo tempo. Um tempo, aliás, que o diretor sabe que não tem.

Apesar da melancolia e da dor palpável em cada quadro, “Bom Dia à Linguagem” tem um tom de esperança. A dedicatória a Jean-Luc Godard, ao fim dos créditos, escancara o propósito do filme de ser uma resposta a “Adeus à Linguagem”, de 2014.

O longa é o mais famoso dos últimos trabalhos do cineasta, que morreu alguns meses antes de Vecchiali, e discute o futuro do cinema em um tom radical. Godard anunciava ali uma mudança completa da forma pelo esgotamento das imagens, acumuladas aos nossos olhos durante o século 20.

“Bom Dia à Linguagem”, por sua vez, vai na via oposta. O filme nunca discute a arte pelos personagens, mas sua narrativa revela a adesão de Vecchiali ao clássico.

O diretor trabalha a forma com imenso rigor, filtrando aquilo que considera essencial no cinema, nos planos e nas atuações. Os poucos flashbacks, únicos momentos que escapam do embate do diretor com Cervo, são cenas dos dois em “O Ignorante”, de 2016.

O resultado é uma simplicidade complexa: simples por aquilo que se vê, complexo em como se chega à cena. A definição foi trabalhada por anos por Vecchiali, que sempre se atentou à forma tradicional do cinema.

A fase final de sua carreira é toda construída em torno disso. Além de Godard, o último filme do diretor se relaciona com suas obras anteriores, como “É o Amor”, de 2015, e “Trem das Vidas”, de 2018. Esses filmes todos buscam nos gestos do elenco a expressão final de seus personagens, amplificando os efeitos sob o público.

Prova disso é a maior recorrência dos atores em seus filmes –o próprio Pascal Cervo trabalhou em oito projetos do cineasta. Em “Bom Dia à Linguagem”, Vecchiali também leva isso ao limite na sua atuação, sempre minimalista. No começo, por exemplo, uma máscara facial se transforma em uma forma do diretor ocultar o rosto com as mãos, traduzindo a dor da vergonha pelos atos do passado.

Esse processo foi visto de perto pelo público paulista, que redescobriu o diretor na mesma época que ele entrava nesse momento da carreira. Desde “Noites Brancas no Píer”, de 2014, Vecchiali se tornou uma figura recorrente da Mostra. Aquele filme, adaptação livre da obra de Dostoiévski, foi um sucesso no festival, que passou a trazer com frequência seus novos projetos.

O diretor veio ao país pela Mostra em 2017, quando o evento exibiu uma retrospectiva de sua carreira e lançou seu “Os 7 Desertores”. Vecchiali naquele momento virou uma estrela, tirando fotos com o público do festival e apresentando com carinho as sessões de seus filmes.

Esse carinho define toda a relação do diretor com o cinema, o que torna “Bom Dia à Linguagem” em uma espécie de evento. Diante do fim, Vecchiali busca a reconciliação, e isso pauta sua opinião sobre o futuro da arte.

BOM DIA À LINGUAGEM

Quando: Seg. (30), às 22h20, no Kinoplex Itaim

Classificação: 12 anos

Elenco: Paul Vecchiali e Pascal Cervo

Produção: França, 2023

Direção: Paul Vecchiali

Avaliação: Muito bom

PEDRO STRAZZA / Folhapress

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