Universidades vão de bancas presenciais a fotos do vestibular para identificar cotistas

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – As bancas de heteroidentificação nas universidades, que avaliam se os alunos que se beneficiaram de cotas para negros são realmente pretos ou pardos, ganharam espaço na tentativa de se evitar fraudes, mas não há consenso sobre o modelo a ser adotado.

Entrevistas presenciais, videoconferência, análise de foto enviada pelo próprio aluno ou tirada durante as provas do vestibular são os métodos adotados por algumas da principais instituições brasileiras.

O mais recente debate sobre essas comissões irrompeu desde a revelação, pela Folha de S.Paulo, de dois casos de candidatos da USP que tiveram a matrícula cancelada, um em direito e outro em medicina, por não terem sido considerados pardos pela universidade, que os avaliou por foto e, depois, por vídeo.

Somente este ano, a USP recebeu 204 recursos de alunos que concorreram às 2.067 vagas reservadas para pretos, pardos e indígenas. Apenas 51 foram deferidos. Após a polêmica envolvendo dois dos cursos mais concorridos do país, o reitor Carlos Carlotti Junior prometeu que as bancas serão presenciais.

Além da discussão sobre a legitimidade da verificação, mesmo dentre universidades que adotam e defendem o procedimento há opiniões divergentes sobre qual é o papel das bancas e quais os critérios melhores de análise dos candidatos.

“Na Unesp, esses meninos seriam considerados pardos. Com certeza, iríamos aprová-los”, disse à Folha de S.Paulo Maria Valéria Barbosa, presidente da Comissão Central de Averiguação das Autodeclarações de Pretos e Pardos da Unesp. Para essa avaliação, ela teve como base as fotos dos garotos publicada nas reportagens da Folha de S.Paulo.

“Temos a inclusão como princípio, não a exclusão. Neste ano, dos mais de 1.200 alunos analisados por fotos, chamamos apenas 30 para fazer videoconferência [o vídeo é usado quando a foto gera dúvida] e aprovamos todos”, relatou a professora e pesquisadora na área de sociologia da educação, com ênfase na temática dos negros.

Por que as bancas foram criadas

Para se inscrever pelas cotas para negros, o candidato –que também passa pelos filtros de ensino público e renda– deve se autodeclarar preto ou pardo. Nos primeiros anos da política de reserva de vagas, implementada pela Lei de Cotas, de 2012, a autodeclaração bastava.

Com o surgimento de denúncias de fraudes, as universidades deram início à formação das bancas de heteroidentificação –a identificação feita por outras pessoas. A verificação racial se dá por fenótipo, ou seja, pelo conjunto de traços observáveis, como a cor da pele, os cabelos e o formato da boca e do nariz.

As dúvidas surgem justamente no caso dos autodeclarados pardos. Esse grupo se tornou, nos últimos anos, a maior parte da população brasileira, mais de 45,3%, enquanto a de pretos é de 10,2% (brancos são 43,5%, indígenas, 0,8%, e amarelos, 0,4%).

Assim como a USP, a Unesp faz a verificação por foto. “Antes a gente tinha que enviar professores da comissão para várias cidades, para verificar presencialmente as denúncias”, conta a educadora. Entre 2014 e 2018, foram desligados 57 alunos.

Com a mudança, foram reforçados critérios e formação dos membros da banca para identificar, por exemplo, o “fenótipo alargado” das pessoas pardas. “É preciso considerar nuances regionais. Uma pessoa vista como parda em uma cidade ou em um estado pode não ser vista da mesma forma em outra localidade”, explica a educadora.

Na Unicamp, a heteroidentificação é feita por foto também, mas desde o ano passado é a própria universidade que faz uma, na hora do vestibular, por tablet. O objetivo é obter um padrão em termos de iluminação, além de evitar a utilização de filtros. Com o novo sistema, mais de 90% das 1.700 inscrições de candidatos autodeclarados negros foram validadas. Apenas 12 foram inconclusivas e encaminhadas para videoconferência. Acabaram todas aprovadas.

No caso das vagas reservadas para o Provão Paulista e para o Enem, as fotos ainda são enviadas pelos próprios alunos.

“Estamos aprimorando o processo com formação da banca”, afirmou o professor Gilberto Alexandre Sobrinho, presidente da Comissão Assessora de Diversidade Étnico-Racial da Unicamp. “Percebemos, na prática, que está indo bem, porque os questionamentos e a judicialização passaram a ser mínimos”, afirmou.

Neste ano, ao todo, a banca validou 2.032 candidatos e invalidou 15. Desses invalidados, 8 entraram com recursos e somente 2 terminaram indeferidos ao final do processo.

Sobrinho diz que a verificação presencial prejudicaria estudantes que moram longe da universidade e têm dificuldades financeiras –a mesma alegação da USP para utilizar a banca online para os estudantes do Provão e do Enem. “Temos candidatos do Brasil todo. Não é viável pensar em deslocamentos assim, especialmente com os mais vulneráveis.”

Pesquisador defende avaliação presencial

Já para Rodrigo Ednilson de Jesus, presidente da Comissão Permanente de Ações Afirmativas e Inclusão Social da UFMG, a verificação presencial é o melhor modelo.

“Há, sem dúvida, uma questão de custo e logística envolvida, mas defendemos que a verificação presencial garante mais segurança tanto para o candidato quanto para a banca”, afirmou à Folha de S.Paulo. “Com a foto e o vídeo haverá sempre as interferências de luz, de qualidade da imagem etc.”

Jesus participou da implementação da banca na universidade federal mineira e, a partir dessa experiência, escreveu o livro “Quem Quer (Pode) Ser Negro no Brasil?” (Autêntica).

Sem discutir o mérito da decisão da USP nos casos recentes contestados, ele chama a atenção para o que considera uma contradição: “As mesmas pessoas que criticam a USP por vetar os meninos por foto partem do pressuposto que a universidade está errada olhando também para as fotos”, diz.

O pesquisador também defende que, na dúvida, não se deve pensar necessariamente em fraude ou má-fé e que o melhor caminho é aprovar o candidato. Sobrinho, da Unicamp, e Barbosa, da Unesp, concordam. “Esses meninos não estão lá para nos enganar”, argumenta a educadora.

Na avaliação de Luiz Augusto Campos, coordenador do Gemaa (Grupo de Estudos Multidiciplinares da Ação Afirmativa) da Uerj, é preciso transparência em relação à escolha dos integrantes, aos métodos e critérios das bancas.

“É importante também realizar as bancas o mais rapidamente possível, idealmente assim que sai a lista dos aprovados no vestibular”, afirmou. “Dessa forma, há mais tempo para os recursos e para que as aulas comecem já com os cotistas aprovados pelas bancas.”

Ele defende que sejam levantados mais dados sobre essas comissões universitárias, de forma a respaldar o debate nacional.

LAURA MATTOS / Folhapress

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