A Fuvest, que seleciona os ingressantes da USP, a principal universidade do país, terá pela primeira vez na história uma lista de leitura obrigatória só com obras escritas por mulheres. Diante do peso que a Fuvest e a USP têm, essa não é apenas uma mudança no vestibular, mas que impacta o ensino da literatura no país.
A nova lista, que a Folha antecipa com exclusividade (veja ao final da reportagem), vale a partir da prova que será realizada em 2025, para ingresso na universidade em 2026.
Conceição Evaristo com o livro ‘Canção para Ninar Menino Grande’, que passará a ser cobrado pela Fuvest Lucas Seixas/Folhapress escritora negra de vestido amarelo e cabelo grisalho sentada com livro aberto na mão em frente a estante de livros **** Durante três anos, ou seja, 2026, 2027 e 2028, a lista terá apenas autoras, e até Machado de Assis, um clássico das leituras obrigatórias nos vestibulares, ficará de fora.
“Essa é uma lista de ruptura”, afirmou Gustavo Monaco, diretor-executivo da Fuvest e membro do Conselho Universitário da USP. “Temos consciência de que haverá resistência, mesmo internamente na universidade, porque a lista de leitura obrigatória sempre seguiu a linha, justificável, de exigir a leitura dos cânones”, disse.
“Obviamente ninguém discute que os autores das listas anteriores sejam grandes nomes, mas a pergunta que se deve fazer é: até que medida essa consagração tem relação com o fato de tantas autoras terem sido silenciadas na história da literatura?”
A partir do vestibular de 2025, os candidatos terão que ler obras das seguintes autoras: Conceição Evaristo, Djaimilia Pereira de Almeida, Julia Lopes de Almeida, Lygia Fagundes Telles, Narcisa Amália, Nísia Floresta, Paulina Chiziane, Rachel de Queiroz e Sophia de Mello Breyner Andresen.
Monaco admite que ele mesmo não conhecia algumas dessas escritoras. “Quando decidimos por essa lista só de mulheres, tivemos que fazer uma pesquisa, buscar obras que mantivessem a qualidade literária que a lista sempre teve”, disse. “E ficou claro que esses livros têm qualidade e foram excluídos por terem sido escritos por mulheres.”
“Com essa lista, os professores do ensino médio poderão trabalhar com os alunos as características das escolas literárias da mesma forma que faziam com Machado de Assis, José de Alencar, com todos os cânones.”
Além disso, Monaco espera que a mudança gere também um debate sobre esse silenciamento dessas autoras. “Queremos ver como será esse resgate na educação.”
Há duas semanas, a Folha publicou um levantamento inédito que mostrou que a Fuvest é a prova que, historicamente, menos exigiu obras escritas por mulheres, comparada a outras universidades bem colocadas no RUF (Ranking Universitário Folha).
Com a mudança, no entanto, a Fuvest se coloca na vanguarda, uma vez que nenhuma das universidades analisadas pelo jornal jamais teve uma lista de livros totalmente feminina. O máximo que houve foi paridade de gênero, mantida pela Universidade Federal de Santa Catarina desde 2020 e pela do Rio Grande do Sul desde 2021.
Na lista anteriormente divulgada pela Fuvest para 2026, havia apenas uma autora e oito homens. Ela era Ruth Guimarães, que permanece em 2025, mas some no ano seguinte. Além dela e de Machado, caíram Dyonélio Machado, Eça de Queirós, Gonçalves Dias, Luís Bernardo Honwana, Mario de Andrade e Tomás Antônio Gonzaga.
Monaco afirma que a nova lista já estava pronta na ocasião da publicação do levantamento da Folha, mas que não foi divulgada para não confundir os vestibulandos deste ano, que fizeram a prova da primeira fase no último domingo (19).
A Fuvest, a princípio, havia decidido mudar a lista a partir de 2027, a fim de contemplar os alunos que entrarão no 1º ano do ensino médio em 2024. Mas optou por antecipar para 2026, segundo Monaco, porque não foi encontrada uma autora relevante do arcadismo, escola literária que é estudada no 1º ano do ensino médio -essa falta de autoras do arcadismo, Monaco pondera, certamente tem relação com as estruturas machistas, ainda mais presentes à época.
A partir do 2º ano do ensino médio é que se aprende o romantismo e o realismo, e, portanto, os alunos que farão a Fuvest 2026, com prova no final de 2025, terão tempo de estudar as autoras da nova lista, representantes dessas escolas literárias.
Machado de Assis deve retornar em 2029
A intenção é fazer essa experiência de três anos “como uma medida de resgate”, segundo o diretor da Fuvest. “Queremos ver como as escolas vão trabalhar essas autoras”, afirmou. “Depois disso, o primeiro homem que decidimos que iria retornar à lista é Machado de Assis. Sei que ele entenderia o motivo de ficar fora por esses três anos.”
Honwana e Machado voltam a ser cobrados para a turma de 2029, respectivamente com “Nós Matamos o Cão Tinhoso!” e “Dom Casmurro”. “Incidente em Antares”, de Érico Verissimo, também aparece na lista desse ano.
No vestibular de 2027, a leitura de “As Meninas”, de Lygia Fagundes Telles, é trocada por “A Paixão Segundo G.H.”, de Clarice Lispector, e o livro cobrado da poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen muda de “O Cristo Cigano”, de 1961, para “Geografia”, de 1967.
Para o ano seguinte, 2028, a obra da potiguar Nísia Floresta –autora feminista do século 19 ainda pouco conhecida, que vem saindo da invisibilidade histórica– muda de “Opúsculo Humanitário”, de 1853, para “Conselhos à Minha Filha”, de 1842. Já a da cearense Rachel de Queiroz deixa de ser “Caminho de Pedras”, de 1937, para “João Miguel”, publicada cinco anos antes.
Para abrigar os três autores homens em 2029, desaparecem da prova “A Paixão Segundo G.H.”, de Clarice, “Memórias de Martha”, de Julia Lopes de Almeida, e “Balada de Amor ao Vento”, da moçambicana Paulina Chiziane.
As mudanças nas listas, segundo Monaco, também tiveram a preocupação de incluir autoras e autores negros. Da lista totalmente feminina, são negras Paulina Chiziane, a brasileira Conceição Evaristo e a angolana Djaimilia Pereira de Almeida –todas contemporâneas e engajadas no debate antirracista.
Em 2029, são dois homens negros, Machado de Assis e o contista moçambicano Luís Bernardo Honwana, além da manutenção de Djaimilia e Conceição.
LIVROS DA FUVEST
Veja abaixo as listas completas das leituras obrigatórias para entrar na USP nos próximos anos
Fuvest 2026
“Opúsculo Humanitário” (1853) – Nísia Floresta
“Nebulosas” (1872) – Narcisa Amália
“Memórias de Martha” (1899) – Julia Lopes de Almeida
“Caminho de Pedras” (1937) – Rachel de Queiroz
“O Cristo Cigano” (1961) – Sophia de Mello Breyner Andresen
“As Meninas” (1973) – Lygia Fagundes Telles
“Balada de Amor ao Vento” (1990) – Paulina Chiziane
“Canção para Ninar Menino Grande” (2018) – Conceição Evaristo
“A Visão das Plantas” (2019) – Djaimilia Pereira de Almeida
Fuvest 2027
“Opúsculo Humanitário” (1853) – Nísia Floresta
“Nebulosas” (1872) – Narcisa Amália
“Memórias de Martha (1899) – Julia Lopes de Almeida
“Caminho de pedras” (1937) – Rachel de Queiroz
“A Paixão Segundo G.H. (1964) – Clarice Lispector
“Geografia” (1967) – Sophia de Mello Breyner Andresen
“Balada de Amor ao Vento” (1990) – Paulina Chiziane
“Canção para Ninar Menino Grande” (2018) – Conceição Evaristo
“A Visão das Plantas” (2019) – Djaimilia Pereira de Almeida
Fuvest 2028
“Conselhos à Minha Filha” (1842) – Nísia Floresta
“Nebulosas” (1872) – Narcisa Amália
“Memórias de Martha” (1899) – Julia Lopes de Almeida
“João Miguel” (1932) – Rachel de Queiroz
“A Paixão Segundo G.H.” (1964) – Clarice Lispector
“Geografia” (1967) – Sophia de Mello Breyner Andresen
“Balada de Amor ao Vento” (1990) – Paulina Chiziane
“Canção para Ninar Menino Grande” (2018) – Conceição Evaristo
“A Visão das Plantas” (2019) – Djaimilia Pereira de Almeida
Fuvest 2029
“Conselhos à Minha Filha” (1842) – Nísia Floresta
“Nebulosas” (1872) – Narcisa Amália
“Dom Casmurro” (1899) – Machado de Assis
“João Miguel” (1932) – Rachel de Queiroz
“Nós Matamos o Cão Tinhoso!” (1964) – Luís Bernardo Honwana
“Geografia” (1967) – Sophia de Mello Breyner Andresen
“Incidente em Antares” (1970) – Érico Veríssimo
“Canção para Ninar Menino Grande” (2018) – Conceição Evaristo
“A visão das Plantas” (2019) – Djaimilia Pereira de Almeida
LAURA MATTOS – WALTER PORTO / Folhapress