SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A proposta de países do Ocidente de usar fundos russos congelados pelo mundo após o início da Guerra da Ucrânia, avaliados em US$ 285 bilhões, é “um tiro no pé” e mina a estabilidade financeira global.
Essa é a avaliação do ministro das Finanças da Rússia, Anton Siluanov, em entrevista à reportagem nesta terça-feira (27) em São Paulo, antes da reunião de ministros dos Brics.
Pela manhã, a secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, havia defendido em evento na capital paulista a proposta de usar ativos russos congelados.
Líderes como o próprio presidente Volodimir Zelenski defendem que esses fundos sejam usados para reconstruir a Ucrânia após a guerra impetrada pela Rússia.
Siluanov deixará o Brasil sem participar do encontro de ministros do G20, previsto para esta quarta (28) e quinta-feira (29). Ele afirma que isso não se deve a eventuais protestos que delegações ocidentais podem fazer, como em outras edições do G20 desde a eclosão da guerra, mas à agenda doméstica russa.
A economia do país tem crescido muito acima do esperado apesar das milhares de sanções de que o país é alvo de potências ocidentais.
À reportagem ele afirma que as restrições impulsionaram desenvolvimento tecnológico e mudaram o eixo econômico do país para o Oriente.
No Brasil, Siluanov defendeu a criação de um sistema global de pagamentos “despolitizado”, depois que seu país foi excluído de sistemas globais como o Swift. Ele afirma que pretende incrementar o comércio em moedas nacionais que não o dólar, além de usar moedas digitais de bancos centrais.
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PERGUNTA – O que a Rússia, na presidência dos Brics, apresenta aos ministros reunidos em São Paulo?
ANTON SILUANOV – Vamos apresentar uma proposta de alternativa ao sistema atual de pagamentos e compensações. Independente, totalmente despolitizado, construído com novas tecnologias, que servirá como alternativa às ferramentas financeiras de hoje, que infelizmente se tornaram vítimas de politização.
A Rússia tem enfrentado certas restrições e sanções. No entanto, estamos negociando ativamente com os países dos Brics. Além disso, o eixo de crescimento da economia está se deslocando cada vez mais para leste, para os países do Oriente.
Para que esse desenvolvimento continue, precisamos que os pagamentos e as compensações ocorram de forma suave e estável. Acredito que isso será visto de forma muito positiva pelos nossos parceiros no Brics.
P – A Rússia foi alvo de milhares de sanções desde o começo da guerra, mas, ao contrário do que diziam as previsões, mesmo as do Banco Central russo, a economia do país cresce mais do que o esperado e tem mostrado resiliência. O que explica isso?
AS – No ano passado fizemos um bom trabalho, nossa economia cresceu 3,6%, nossa indústria aumentou 3,4%, a renda real, apesar de todas as restrições e sanções, cresceu 5,4%. O investimento cresceu quase 10,5%. Isso se deve à adaptação oportuna da economia e às medidas que tomamos para apoiar nossas empresas e nossos cidadãos.
Quem aplicou sanções estava pensando que a economia russa seria deixada às sombras e despencaria de 10% a 20%, o que não aconteceu. Nos últimos anos, temos seguido uma política financeira e orçamentária responsável. O Banco Central tem mirado a taxa de câmbio, mantendo uma taxa flutuante. Tudo isso nos permitiu minimizar o efeito que as sanções introduzidas tiveram até agora.
Temos trabalhado dentro do nosso Orçamento para garantir soberania tecnológica, com apoio a áreas-chave da indústria, como aviação e automobilística. Agora estamos focando eletrônicos, construção de máquinas, microeletrônicos.
Conseguimos conter o déficit, que foi de 1,9% no ano passado. Basta olhar para os Orçamentos desequilibrados dos países que nos impuseram sanções e você pode tirar as conclusões necessárias.
O Banco Central criou um sistema separado de pagamentos e de mensagens financeiras separado. Medidas tomadas pela MasterCard e Visa [que suspenderam ações no país] tiveram pouco ou nenhum efeito em nossa capacidade de realizar pagamentos.
P – Mas o próprio Banco Central afirmou recentemente que a economia está superaquecida. Economistas creditam o bom resultado à economia de guerra, com aumento de gastos com defesa. Como a Rússia vai continuar a crescer com o fim da guerra? Terá dinheiro para continuar a gastar se a guerra durar ainda muitos anos?
AS – Você está correto. Nos últimos anos a parte fiscal corresponde a mais de 10% do PIB, enquanto nossos investimentos cresceram 10,5%. Mas não com dinheiro público, e sim dinheiro do setor privado.
A maior parte desse dinheiro vai para independência tecnológica, tanto dinheiro estatal quanto privado, com parcerias público-privadas para as novas indústrias. Olhe para 2014, quando começaram as sanções [após a anexação da Crimeia]. Costumávamos importar muitos alimentos, mas investimos na nossa própria indústria e alcançamos a independência alimentar. Tudo o que importávamos do Ocidente é produzido localmente.
No passado, o investimento privado costumava ir para projetos no exterior. Agora está ficando aqui, os empresários sabem que é mais seguro e podem obter uma fonte de renda.
P – A secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, disse que o G7 buscar utilizar US$ 285 bilhões em fundos russos congelados pelo mundo. Líderes como o presidente ucraniano defendem usar esse dinheiro para reconstruir a Ucrânia. Como vê essa proposta?
AS – Isso é um erro, porque mina as bases do atual sistema monetário e financeiro. A maioria do que foi congelado no exterior é de reservas do Banco Central, que sempre estiveram acima da política e foram protegidas por instrumentos legais e pelas instituições.
É um tiro no pé, porque mais cedo ou mais tarde, como um bumerangue, isso vai voltar para assombrá-los. Teremos que responder, porque congelamos ativos financeiros do exterior em nosso país quase no mesmo volume.
Haverá uma resposta simétrica, mas enfatizo que isso [usar os recursos congelados] seria um erro, violaria os pilares do sistema legal internacional, seria basicamente um roubo. Não poderíamos ficar indiferentes.
P – Você disse que a economia russa girou para o Oriente, vocês ampliaram a parceria com a China e a Índia e fazem transações em yuan. O presidente Lula defendeu o fim da hegemonia do dólar em transações internacionais. Estão alinhados?
AS – Concordo em grande parte com o presidente Lula. O dólar tem minado sua estabilidade e resiliência como moeda de reserva com a decisão de congelar os ativos soberanos de outro país.
Hoje, 85% do nosso comércio é realizado em moedas nacionais, em particular em rublos e em yuan. Isso é muito conveniente. O uso da moeda brasileira em nosso comércio dependerá do volume de comércio, hoje em modestos US$ 10 bi a US$ 11 bi. Vejo grande potencial de crescimento, quanto maior o comércio, mais chances haverá de usar rublo e real em nossas transações. Mas não apenas isso, também propomos o uso de moedas digitais de bancos centrais.
P – Por que o senhor não vai ficar para as reuniões do G20? Há receio de protestos de outras delegações contra a Rússia?
AS – Não, nada disso. Já nos acostumamos com os protestos de nossos colegas ocidentais nos últimos dois anos. Estão cada vez mais tentando politizar esta plataforma, que é destinada a discutir economia e finanças.
Mas em 29 de fevereiro nosso presidente [Putin] vai fazer seu discurso à Assembleia Federal, neste momento crucial, vai incluir as iniciativas e tarefas para os próximos anos. Eu não posso estar ausente do evento político mais importante de nosso calendário. Gostaria de participar da reunião do G20. E sempre tento sempre que possível, mas terei que partir.
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RAIO-X
Anton Siluanov, 60
Ministro das Finanças da Rússia, trabalha na pasta desde o fim dos anos 1980, ainda na União Soviética. Está no cargo desde 2011. Entre 2018 e 2020, foi também primeiro vice-primeiro ministro da Rússia
THIAGO AMÂNCIO / Folhapress