ATENAS, GRÉCIA (FOLHAPRESS) – Até hoje, quando o brasileiro Vanderlei Cordeiro de Lima, 54, pisa na Grécia, a população local o saúda como um verdadeiro herói olímpico. Motoristas, funcionários de hotel, garçons e fãs de corridas que cruzam o seu caminho fazem questão de pará-lo para cumprimentar e pedir uma foto.
O paranaense de Cruzeiro do Oeste faz por merecer o reconhecimento. O ato de superação após ser atacado pelo padre irlandês Cornelius Horan quando liderava a prova da maratona nas Olimpíadas de Atenas, em 2004, com a inesquecível entrada de aviãozinho no histórico Estádio Panatenaico para conquistar o bronze, renderam a Vanderlei a medalha Barão Pierre de Coubertin.
Ele é até hoje é o único latino-americano que recebeu a honraria, concedida aos atletas reconhecidos pelo COI (Comitê Olímpico Internacional), por seu alto grau de esportividade.
Em 2023, 19 anos depois, o brasileiro voltou à Grécia para correr mais uma vez a maratona de Atenas, prova que remete à origem da modalidade.
Diz a lenda que a primeira maratona da história teria ocorrido no ano 490 A.C. (antes de Cristo), quando o soldado Fidípides correu entre as cidades de Maratona e Atenas para comunicar a vitória dos atenienses na batalha contra os persas.
Na primeira edição dos Jogos Olímpicos na capital grega da era moderna, em 1896, a maratona foi disputada nos 40 km que separam as duas cidades. Em 1908, início do século passado, foi estendida em 2,195 km, para que a largada ocorresse na frente do Palácio de Windsor, lar da família real britânica.
Único brasileiro que conquistou uma medalha na maratona em edições dos Jogos Olímpicos, Vanderlei afirma que sempre foi um sonho correr novamente o percurso da prova.
“Era uma vontade minha um dia voltar e concluir a prova de uma maneira diferente”, diz Vanderlei à Folha. Ele voltou a Atenas na condição de atleta amador, patrocinado pela marca de calçados esportivos Olympikus, a mesma que o patrocinava em 2004.
O corredor se aposentou profissionalmente das pistas em 2008 e havia corrido sua última maratona em abril de 2019, em Paris.
“Buscamos resgatar a história que muitos jovens da nova geração não conhecem”, diz Bianca Dallegrave, gerente de marketing da Olympikus. Recontar o episódio, afirma a executiva, é uma oportunidade para que os novos talentos do esporte no Brasil se inspirem e almejem glórias como a alcançada por Vanderlei.
Nos seis meses de preparação para correr a maratona de Atenas neste ano, o brasileiro teve de suspender os treinamentos por algumas semanas, após contrair dengue.
Neste domingo (12), em um dia quente na capital grega, Vanderlei Cordeiro de Lima completou os 42,195 km em 2 horas, 54 minutos e 29 segundos, cruzando a linha de chegada na 138ª posição.
Cerca de 20 mil corredores participaram da prova, cujo vencedor foi o queniano Edwin Kiprop Kiptoo, que estabeleceu um novo recorde com o tempo de 2 horas, 10 minutos e 34 segundos.
O brasileiro chegou exausto devido ao ritmo forte que imprimiu, a despeito do dia quente, em que os termômetros marcavam mais de 25 graus nas ruas atenienses. Ao concluir o percurso, precisou de atendimento médico.
“Todo esforço valeu a pena para chegar nesse dia tão especial para mim”, afirmou o brasileiro. “Hoje estou me sentindo o Fidípides, como o verdadeiro soldado que cumpriu a missão”.
Treinador do corredor brasileiro há mais de 30 anos, Ricardo D´Angelo diz que Vanderlei “não sabe brincar”, e superou em muito a própria meta de completar a prova em pouco mais de 3 horas.
“A gente reviver esse momento é um grande reconhecimento dos organizadores da maratona, que nos receberam muito bem. O Vanderlei é bastante reconhecido pela medalha olímpica e por tudo que aconteceu na história dele.”
Ao passar pelo quilômetro 36 da prova, onde foi interceptado pelo padre irlandês há quase 20 anos, moradores da cidade que acompanhavam os corredores festejaram a passagem do brasileiro.
Dessa vez, sem a presença do padre, e tampouco do grego Polyvios Kossivas, que foi quem o ajudou a se desvencilhar de Horan. Polyvios morreu no início de 2023, aos 71 anos.
“Foi o anjo da guarda que me acolheu e me tirou de uma situação que poderia ser ainda pior. Se não fosse a atitude dele, poderia ter perdido muito mais tempo e não teria alcançado a medalha de bronze”, afirma Vanderlei.
Quando o incidente aconteceu, ninguém sabia quem era aquele homem corpulento que ajudou o brasileiro sem pestanejar. Após questionar a polícia e o Ministério da Ordem Pública da Grécia, sem sucesso, a Folha publicou um anúncio no jornal “Goal News”, em busca da identidade do espectador.
Kossivas respondeu. “Reagi imediatamente, sem calcular os riscos. Eu afastei o intruso e vi o Vanderlei caído como um pássaro ferido. Comecei a gritar ‘vai, vai’ para incentivá-lo”, relatou o grego na época.
Vanderlei diz que, se pudesse encontrar-se com Polyvios, enalteceria ainda mais seu ato de coragem e altruísmo por lhe socorrer em um momento difícil pelo qual passava, e o agradeceria novamente.
O corredor chegou a se encontrar com a filha dele, Smaragda Tsirka. Ela elogiou o brasileiro por seu caráter e determinação, demonstrados ao longo de toda carreira. “Sua força física e mental são admiráveis. Parabéns, Vanderlei!”, celebrou ela.
A forma como Vanderlei reagiu ao episódio –sem se deixar abater pelo ataque e saudando a torcida enquanto adentrava no estádio– provoca comoção até os dias de hoje, por trazer novamente à tona aqueles momentos marcantes, diz a grega. “Gostaria que meu pai estivesse aqui. Ele abraçaria e levantaria o Vanderlei novamente”.
Pessoas que acompanharam presencialmente a maratona em 2004 e se lembram daquele dia também enalteceram o feito do brasileiro.
“O Vanderlei é uma lenda e espero um dia contar aos meus filhos sobre a sua história de coragem e superação”, diz Andreas Vougioukas, que estava entre os torcedores que acompanharam a maratona olímpica e trabalhou como motorista de Vanderlei nessa volta a Atenas.
“Estive presente em uma entrevista do Vanderlei com um portal de notícias sobre corrida da Grécia, e o jornalista ficou muito emocionado com a presença dele aqui. Os gregos têm um carinho muito especial por ele”, diz Laila Roberta de Ornelas Chagas, tradutora de Vanderlei na Grécia.
Os fãs, gregos, brasileiros e de outras nacionalidades, devem ter a oportunidade de ainda ver o corredor em ação por mais algum tempo, mas talvez não mais em distâncias tão longas. Exausto ao término da corrida neste domingo, Vanderlei afirmou que não tem a pretensão de voltar a correr uma maratona tão cedo.
“Quero fazer provas mais curtas, até porque a preparação não exige tanto”, afirmou, acrescentando que pretende intensificar a participação em provas de rua no Brasil, até por uma cobrança que recebe do meio esportivo. “Isso é legal, porque é um sinal de que a falta do Vanderlei nas provas está fazendo diferença.”
Segundo ele, o maior legado que quer deixar para as gerações futuras é por meio da educação e do esporte. Em 2008, quando estava prestes a se aposentar das pistas como profissional, ele fundou junto com seu treinador o IVCL (Instituto Vanderlei Cordeiro de Lima), em Campinas.
São cerca de 350 crianças e adolescentes entre 6 e 17 anos que recebem orientação técnica para a prática do atletismo, alimentação e acompanhamento médico, entre outras atividades. “É uma forma de educar através do esporte”, afirma.
Sobre o infame padre irlandês, Vanderlei diz que não guarda nenhuma mágoa ou rancor. “Aconteceu o fato, faz parte da história, mas não faz parte do meu contexto de vida, da busca e da conquista de uma medalha.”
*O repórter viajou a convite da Olympikus
LUCAS BOMBANA / Folhapress