SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Tem o Club de Regatas Vasco da Gama assegurado definitivamente e com todo brilhantismo o título de campeão da série A da 1ª divisão da Metropolitana, com o resultado do jogo de ante-hontem, com o S. Christovão. Empenhou-se com o maximo de suas forças para abater o quadro sanchristovense, obtendo brilhante e justo triumpho, como compensação ao esforço dispendido”, relatou o Jornal do Brasil, há cem anos.
O texto não fugia ao padrão da ainda insípida crônica esportiva da época. Mas aquele campeonato, decidido em 12 de agosto de 1923, no campo da rua General Severiano, tem um lugar de destaque na história. Não só a história do Vasco, campeão carioca pela primeira vez. Foi uma vitória com repercussões no esporte do Rio de Janeiro, uma conquista de um grupo formado por pobres, entre eles pretos e pardos, figuras que não eram bem-vindas no então elitista foot-ball.
Assim era aquele time vascaíno, que usava camisas negras. Jogavam operários, trabalhadores de estabelecimentos como botequins, muitos deles de proprietários portugueses. Eles chegaram à “elite”, palavra que tinha carga semântica ainda maior naquele contexto, por meio das divisões de acesso do futebol do Rio.
O que ninguém esperava era que esses jogadores do subúrbio ameaçassem a hegemonia dos fidalgos Flamengo, Fluminense, Botafogo e America. “Quando os adversarios deram accôrdo de si, era tarde”, observou o Correio da Manhã. A descrença, segundo o jornal, estendia-se aos próprios campeões: “Ninguem do Vasco da Gama – directores, socios e jogadores – pensou em que o club poderia chegar ás culminancias de hoje”.
Mas chegou.
Com recursos novos para aquele combate.
“O mulato e o preto eram, assim, aos olhos dos clubes finos, uma espécie de arma proibida. Não um revólver, uma navalha. Se nenhum grande clube puxasse a navalha, os outros podiam continuar lutando de florete”, escreveu Mario Filho, em seu célebre -e, é verdade, um tanto romanceado- “O Negro no Futebol Brasileiro”.
“Um clube da segunda divisão, porém, subiu para a primeira divisão. Chamava-se Clube de Regatas Vasco da Gama, e trouxe com ele, mulatos e pretos. Nelson Conceição, que tinha saído do Engenho de Dentro, mulato; Ceci, do Vila Isabel, quase preto; Nicolino, do Andaraí, preto. Os outros, brancos, alguns mal sabendo assinar o nome. O Vasco, clube da colônia, seguia a boa tradição portuguesa da mistura.”
A mistura funcionou. O Vasco só perdeu um jogo em 14 no campeonato, um 3 a 2 para o Flamengo com muita reclamação a respeito da arbitragem -e enorme festa do oponente, eternizada nas palavras de Mario Filho, com direito a corso e provocações em bares. “Não estavam satisfeitos ainda os flamengos: a estátua de Pedro Álvares Cabral, ainda perto do relógio, na Glória, amanheceu com colares de réstias de cebolas.”
Virou uma glória flamenga -o adjetivo “flamenguista” ainda não existia- macular o que foi uma campanha tão relevante, de quase invencibilidade, do adversário que se tornava arquirrival. Segundo Mario, o resultado “tinha dado a ilusão de que tudo ia voltar a ser o que era dantes, os times de brancos levantando campeonatos, os times de pretos perdendo sempre”.
Mas a ilusão durou pouco. “Os clubes finos, de sociedade, como se dizia, estavam diante de um fato consumado. Não se ganhava campeonato só com times de brancos. Um time de brancos, mulatos e pretos era o campeão da cidade. Contra esse time, os times de brancos não tinham podido fazer nada”, escreveu Mario, discípulo de Gilberto Freyre. “Era uma verdadeira revolução que se operava no futebol brasileiro. Restava saber qual seria a reação dos grandes clubes.”
A reação foi a criação de uma nova liga, a Amea (Associação Metropolitana de Esportes Athleticos), com privilégios aos fundadores e uma série de exigências que, na prática, impediam a participação do Vasco. Havia requisitos referentes ao campo de cada equipe e ao emprego dos jogadores, que precisavam ser alfabetizados.
O clube, então, comunicou que estava fora. No episódio que ficou conhecido como “resposta histórica”, enviou carta à associação dizendo que a posição de inferioridade que lhe era imposta não se justificava. E defendeu os 12 jogadores cujo ingresso na Amea tinha sido vetado.
“Seria um acto pouco digno da nossa parte, sacrificar ao desejo de fazer parte da A.M.E.A., alguns dos que luctaram para que tivessemos entre outras victorias, a do Campeonato de Foot-Ball da Cidade do Rio de Janeiro de 1923. São esses doze jogadores, jovens, quasi todos brasileiros, no começo de sua carreira, e o acto publico que os pode macular, nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que elles com tanta galhardia cobriram de glorias”, dizia o texto, assinado pelo presidente José Augusto Prestes.
Houve, então, uma cisão, com a realização de dois campeonatos. “A distinção que se estabeleceu entre a Amea e a Liga Metropolitana foi esta: uma, liga de clubes brancos, a outra, liga de clubes brancos, mulatos e pretos, tudo misturado”, resumiu Mario Filho.
A divisão -comum também em outros centros, como São Paulo- estava no contexto de uma das grandes batalhas do futebol brasileiro no período, amadorismo x profissionalismo. A Amea chegou a estabelecer uma “Comissão de Sindicância” para visitar supostos postos de trabalho e checar se os jogadores tinham emprego.
Os times ricos, via de regra, defendiam o jogo amador, sem pagamento. “O amadorismo, o esporte pelo esporte, era para quem estava de cima. Enquanto houvesse amadorismo os brancos seriam superiores aos pretos, os ricos aos pobres”, observou Mario, que era, como se vê, entusiasta do profissionalismo.
Incomodava as equipes batidas pelo Vasco que os jogadores nem sempre estivessem no trabalho. A enorme e bem documentada vantagem do time nos segundos tempos era atribuída ao preparo físico incomum, fruto dos treinos diários sob comando do uruguaio Ramón Platero. Se os jogadores treinavam todo dia, como trabalhavam? Ou será que os comerciantes portugueses só lhes davam emprego para que jogassem futebol?
A discussão ficaria obsoleta na década seguinte, com a adoção oficial do profissionalismo. E a ausência do Vasco na Amea durou apenas um ano. A equipe já era boa demais e tinha torcida demais -à época, de longe, era a maior do Rio- para ser ignorada. Entrou no campeonato de novo, com seus pretos. E os pretos logo ganhariam também as camisas dos velhos clubes de elite. Não demoraria, por exemplo, e Domingos da Guia seria ídolo do Flamengo, onde jogou de 1936 a 1943.
Há bastante questionamento sobre a pureza de sentimentos dos dirigentes do Vasco -brancos, como são brancos hoje- na década de 1920. A “resposta histórica” virou moderna peça de marketing e teve seu desenho reformado. Mas ações efetivas no combate à discriminação ainda são cobradas da agremiação cruzmaltina -e de todas as outras.
Em artigo de 2021, publicado no site Ludopédio, o pesquisador Ricardo Pinto dos Santos -que trabalhou no Centro de Memória do Vasco- fez esses questionamentos. E teve de lidar com a ira dos vascaínos, especialmente do grupo que se intitula “Camisas Negras”.
“O desejo em manter os bons e vitoriosos jogadores em seus quadros de atletas, traduz muito mais sobre a necessidade do Vasco em manter um time forte, vitorioso e lucrativo, do que efetivamente parte de um movimento de luta contra o racismo dentro do clube. Até aquele momento, nem em tempo posterior, nenhum dos clubes do Rio de Janeiro, incluindo o cruzmaltino, tratavam sobre o racismo ou a questão negra de forma sistemática, nem en passant, em suas reuniões internas”, escreveu Santos.
“Fica claro que a saída da liga não foi resultado do engajamento do clube na causa negra. Na verdade, foi parte do processo de mercantilização do futebol, visto que, sem aqueles jogadores, o clube sofreria prejuízos em termos esportivos e financeiros, não havendo naquele momento nenhuma outra opção que pudesse manter o clube em destaque no futebol”, acrescentou o pesquisador, doutor em história comparada pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
De qualquer modo, o título de 1923 e seus desdobramentos são motivo de enorme e justificado orgulho para os vascaínos. De uma maneira ou de outra, um time com pretos e pardos atropelou os adversários e mudou o futebol de um Rio de Janeiro recém-saído da escravidão.
“A vitória dos camisas negras foi um fato histórico significativo para expor as contradições raciais de uma sociedade”, afirmou Hugo da Silva Moraes, também doutor em história comparada pela UFRJ. “A modernidade traduzida num modelo amador sucumbiu ao processo de profissionalização, tornando-se um elemento importante para a ascensão de setores populares.”
Este era Nelson Conceição, goleiro histórico do Vasco Centro de Memória/Vasco Nelson Conceição, goleiro do Vasco campeão carioca de 1923 **** Contratado neste ano pelo Vasco, o defensor Léo foi apresentado à história de 1923/1924. Preto, emocionou-se ao recordar a situação em que teve sua entrada impedida em um shopping center carioca, a caminho de um treino.
“Foi uma marca que ficou, uma cicatriz. Estar no Vasco no centenário dos camisas negras, para mim, tem um sabor especial. Foi um ato, lá atrás, que abriu a porta para mim hoje”, disse o zagueiro.
“Aquilo me lembrou do que eu passei.”
MARCOS GUEDES / Folhapress