Veja como era a URV, que antecedeu o real

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Operações relativamente simples, como a compra de uma roupa ou de itens de mercado estavam mais confusas ao fim do primeiro trimestre de 1994. O Brasil vivia um ciclo longo de inflação descontrolada, a moeda era o cruzeiro real (coloca em circulação apenas alguns meses antes, em agosto de 1993) e a nova, o real, estava prestes a chegar.

Antes dele, porém, um indexador foi usado como transição. A URV (Unidade Real de Valor) entrou em vigor no dia 1º de março de 1994 valendo CR$ 647,50. Naquela data, o salário mínimo passou a ser de 64,797 URVs. O valor final do piso, ainda em cruzeiro, era ajustado diariamente, conforme a nova URV saía.

O Banco Central divulgava diariamente a variação do dia seguinte a partir de um a média de três índices. A ideia era refletir a variação de preços até que o real se tornasse a moeda oficial.

Na edição da Folha de S. Paulo de 1º de março, entidades criticavam a adoção da conversão, alguns apostavam até em fracasso do indexador. A Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) recomendava cautela aos empresários e as montadoras avaliavam fixar o preço em URV a partir de uma média.

Eram tempos de muitas dúvidas.

Para o designer gráfico Paulo André Santiago, 42, a unidade de referência de valor à época era o preço de revistas e gibis na banca que costumava frequentar com os amigos.

As memórias daquele tempo, conta, são algo confusas, mas ele lembra como era difícil entender se o dinheiro –uma pequena poupança feita a partir do que recebia dos pais para o lanche na escola– seria ou não suficiente para a compra dos quadrinhos.

“A gente não tinha muita noção de valor. Pegava uma quantidade de dinheiro e dava para comprar. Nossa referência era de que os quadrinhos de heróis eram o dobro do que os da [Turma da] Mônica e uma revista era dobro dos [gibis] de Marvell e DC. Como mudava o preço direto, a gente seguia esse padrão”, lembra.

Quando a URV passa a valer, o preço das revistas saem das capas. A edição 65 do X-Men, então distribuída pela editoria Abril Jovem, e que ainda está no acervo do designer, já não trazia o preço impresso na capa. O valor foi substituído por um código que indicava uma posição em uma tabela.

No caixa da banca é que se descobria o preço. A tabela trazia o valor em URV e sua conversão para o cruzeiro real.

Como a URV era ajustada diariamente para compensar a desvalorização, o dinheiro da merenda de Paulo encolheu. A compra dos volumes da série “Programa de Extermínio de X-Men” ficou prejudicada. “Comprei em março e depois não comprei mais.”

Uma URV em 1º de março valia CR$ 647,50. No dia seguinte, CR$ 657,50. Em 30 de junho, seu último dia de existência, já estava em CR$ 2.750. Em um outro exemplo: no fim de março, uma bicicleta custava, em cruzeiros reais, 99.900. Em URV, 128,13.

Márcia Regina da Silva, 60, trabalhava na área contábil da companhia aérea Varig nessa época, antes de virar controladora exterior.

“Trabalhava com tarifa, as coisas mudavam da noite para o dia. Tudo era muito manual, eram tabelas e mais tabelas que vinham todos os dias e a gente tinha que aplicar [para calcular]”, conta.

Hoje aposentada, Márcia lembra que a rotina dos colega que trabalhavam na loja –nessa época, as compras de passagens eram feitas em espaços próprios das aéreas ou por meio de agências de viagens–, era ainda mais complicada.

No contábil, atividades que eram quase automáticas, passaram a exigir outros protocolos. “Tinha rota que você sabia de cor calcular a tarifa, mas chegou um momento que não tinha nem como mais”, diz.

VIDA COM INFLAÇÃO ALTA

Márcia lembra também das estratégias que adotou para manter o pagamento do financiamento do apartamento e da escola do filho. A renda não era ruim, mas o período prolongado de inflação nas alturas abalou as economias da família.

“Eu coloca todo o salário na poupança, rendia 30%, uma coisa impensável. Aí eu juntava dois meses [de depósitos] e pagava sempre uma parcela atrasada para não perder o apartamento”, lembra. Na escola do filho, os anúncios de reajustes eram mensais. A solução foi negociar.

“Eram aumento pequenos, como se R$ 10, mas fazia muita diferença. Aí eles passaram a juntas as varações e eu pagava a cada seis meses.”

No tradicional bairro de Higienópolis, na região central de São Paulo, Marinaldo Antonio Medeiros, 60, bateu ponto diariamente no supermercado Alfama, em frente à praça Buenos Aires, até o pequeno estabelecimento fechar as portas no fim dos 1990.

Lá, foi fiscal de caixa, encarregado e comprador. “A gente usava um carimbo para marcar as mercadorias em lata e a etiquetadora para as outras. Tinha dia que a gente mudava os preços duas, três vezes até.”

O mercado era de pequeno porte. Muitos clientes, moradores do bairro, usavam a tradicional caderneta. Compravam e depois pagavam, alguns mensalmente, outros a cada semana.

Com a URV, os caixas ganharam tabelas de conversão. Hoje aposentado, ele diz se lembrar da semana de estreia da nova moeda. “Foi muito rápido, a gente não sabia muito o que fazer, mas em menos de uma semana, tudo estava bem organizado, tivemos que reduzir aquele momento de zeros nos preços.”

Para Marcelo Pulzi, 53, a memória mais vívida dessa época era a troca de preços nas vitrines, algo que precisava fazer diariamente.

Ele trabalhava em uma loja da Benetton no shopping Ibirapuera, zona sul de São Paulo. “Sempre colocávamos a alteração da cotação em um porta-retratos, com o valor do dia do indexador. Quando o cliente perguntava o preço, era calculadora na mão para saber, de acordo com a cotação do dia.”

Carlos Correa, 60, era gerente de compras de um supermercado em 1994. O trabalho iniciado um ano antes consistia em gerir as tabelas de preços das indústrias num período de inflação galopante.

A entrada da URV foi bastante confusa, lembra. “As empresas passaram a manter suas tabelas em URV, não mexia desse preço”, diz. “Era como se fizéssemos uma conversão de dólares. Gerava muita dificuldade, mas as pessoas foram acostumando.”

Segundo Correa, no processo de implantação da nova moeda, uma preocupação recorrentes dos segmentos empresariais era que o governo congelasse preços, como havia acontecido em outros planos econômicos.

O fim da hiperinflação e maior estabilidade de preços moldou, na avaliação dele, uma importante mudança no jeito de comprar, tanto entre os consumidores quanto entre os lojistas.

“O supermercado, quanto mais estoque tivesse, mais tinha competitividade para vender com os menores preços”, diz Correa, que hoje é diretor na Apas (Associação Paulista de Supermercados).

Quem tinha capacidade de comprar grandes volume conseguia fechar mais pedidos antes dos frequentes reajustes. Do lado do consumo, logo as famílias perceberam que não era necessário correr para a loja no dia seguinte ao depósito do salário.

FERNANDA BRIGATTI / Folhapress

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