VENEZA, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – Da última vez que o grego Yorgos Lanthimos disputou o Festival de Veneza, em 2018, ficou perto de abocanhar o Leão de Ouro com seu “A Favorita”. Mas bateu na trave, e ficou com o segundo troféu mais importante, o Grande Prêmio do Júri. E o longa rendeu ainda a láurea de melhor atuação feminina para Olivia Colman, abrindo caminho para seu Oscar de melhor atriz alguns meses depois.
Pelas reações a “Pobres Criaturas”, novo filme de Lanthimos, apresentado no Lido nesta sexta, o cineasta encontra-se em uma situação semelhante. Bastante aplaudida pela imprensa, sua fantasia de humor ácido sobre a natureza humana mais uma vez desponta como um dos favoritos ao Leão, embora a costumeira afetação formal do cineasta e sua propensão a mostrar o lado podre das pessoas o faça passar longe da unanimidade.
Melhor para sua protagonista, Emma Stone, cuja irretocável performance pode fazer o júri presidido por Damien Chazelle premiá-la como melhor atriz. Até porque, não custa lembrar: Chazelle é amigo de longa data de Stone foi ele quem a dirigiu em “La La Land: Cantando Estações”, de 2016, filme que a fez ganhar prêmios em Veneza e no Oscar. E a excelência de sua performance em “Pobres Criaturas” pode lhe valer novamente ambas as honrarias.
O filme começa em uma Londres de época indeterminada, em que uma mulher grávida, vivida por Stone, decide se jogar de uma ponte. Um médico obcecado por experimentos científicos, que se autointitula God (Deus, em inglês), vivido por Willem Dafoe, encontra o corpo segundos após sua queda e o submete a uma cirurgia pioneira: transplanta o cérebro do bebê para o crânio da mãe.
Como uma espécie de doutor Frankenstein, God observa com entusiasmo sua criatura, que batiza de Bella. No início, ela é uma figura estranhíssima: com corpo de adulta e cabeça de criança, locomove-se atabalhoadamente, mal consegue formular uma frase correta, faz birrinha e travessuras o tempo todo. Mas sua mente absorve conhecimento com velocidade inacreditável, e em questão de dias, Bella já estará com um vocabulário riquíssimo, lendo filosofia e questionando o mundo em que vive.
Até chegar nesse ponto, no entanto, precisa aprender a lidar com a própria falta de freio sua grande espontaneidade e a ausência de superego a fazem ter comportamentos socialmente inaceitáveis. E a esfuziante comicidade do longa se deve sobretudo a cenas envolvendo a língua solta e ferina de Bella, em sua busca por compreensão de um mundo que seu corpo já conhece, mas não sua mente.
Lanthimos dá especial atenção às descobertas sexuais da moça, que em geral rendem cenas de um humor adoravelmente impudico, embora aqui e ali descambe para um politicamente incorreto um tanto pronunciado para os parâmetros do cinema atual. Provavelmente uma parcela do público mais ferrenhamente feminista não há de achar a menor graça na forma como o filme apresenta o sexo, sobretudo nas cenas envolvendo prostituição.
Curiosamente, porém, o longa tem um subtexto amplamente feminista: Bella surge como uma mulher totalmente desinteressada em seguir convenções sociais e que utiliza a liberdade sexual como uma forma de libertação.
Lanthimos cria um universo altamente estilizado, mais até do que de hábito. O filme é extremamente ambicioso, mas o cineasta banca sua aposta alta e consegue atingir seus objetivos, tanto formais quanto em termos de conteúdo. Dafoe, como o médico amalucado, e, sobretudo, Mark Ruffalo, no papel de um advogado metido a machão, mas excessivamente sentimental, completam o elenco deste filme, que já surge forte nas apostas do Oscar do ano que vem.
Também no páreo para a estatueta dourada está “Ferrari”, primeiro longa em oito anos dirigido pelo veterano Michael Mann. Ele finalmente conseguiu concretizar um sonho que tinha ainda nos anos 1990: um filme sobre Enzo Ferrari, fundador da empresa automobilística que leva seu sobrenome.
“Ferrari” traz um Adam Driver de cabelos brancos e com prótese na barriga no papel principal, encarnando um homem mulherengo e perfeccionista, que parece se importar menos com a morte de seus pilotos em acidentes com seus carros do que com os maus resultados de sua marca nas corridas.
O filme se passa em 1957, quando a Ferrari está à beira da falência. O casamento de Enzo também está no fim, sobretudo depois que sua mulher, vivida com intensidade por Penélope Cruz, descobre que ele tem um filho com a amante, interpretada por Shailene Woodley.
O ator brasileiro Gabriel Leone tem um papel relativamente importante no longa, como o piloto espanhol Alfonso de Portago, morto em uma corrida. Ele tem, inclusive, uma breve cena de nu, em que a câmera enfoca o derrière desnudo do ator carioca.
Mann já é octogenário, mas a sua competência técnica enquanto diretor ainda é espantosa. O filme é imponente, sólido, mas tem um problema fundamental: o protagonista é um personagem bem menos interessante do que talvez Mann considere. Em nenhum momento o espectador entende por que o Enzo Ferrari ao menos o do filme lhe pareceu um sujeito tão extraordinário a ponto de o cineasta cultivar o projeto por tantos anos. Foi bem recebido pela imprensa, mas com um certo ar de decepção.
Outro cineasta recebido com ânimo, mas sem maiores exaltações, foi o chileno Pablo Larraín, que levou ao Lido “O Conde”, fantasia humorística em que o ex-presidente Augusto Pinochet surge como um vampiro. No filme, o ex-ditador ainda hoje está vivo, vivendo escondido desde que forjou a própria morte, em 2006.
Interpretado pelo ator chileno veterano Jaime Vadell, o Pinochet do filme tem 250 anos e, de vez em quando, escapa de seu refúgio atrás de sangue fresco nos grandes centros urbanos. Com uma capa estilo Batman, sai voando por aí atrás de suas presas uma alegoria da maneira exploratória e truculenta com a qual o ditador lidava com a população do Chile, durante o período em que governou o país, entre 1973 e 1990, mas mesmo depois, quando foi acusado de trapaças financeiras de toda sorte, sugando os chilenos até onde pôde.
É uma comédia em forma de farsa que não tem um pingo de medo de soar caricata, muito pelo contrário: está no exagero e na caricatura sua razão de existir. O filme é de um cinismo e um sarcasmo tão pronunciados que se torna quase que impossível para o espectador ter por ele algum tipo de envolvimento emocional. Isso atrapalha na relação pessoal do público com a obra, mas como a intenção de Larraín certamente não era tornar seu longa um objeto de adoração irrefletida, o filme é um produto bem-sucedido em sua proposta. Deve estrear na Netflix no dia 15 de setembro.
BRUNO GHETTI / Folhapress