KAZAN, None (FOLHAPRESS) – O presidente da Rússia, Vladimir Putin, disse que diverge do Brasil em relação à Venezuela, mas que a ditadura de Nicolás Maduro só poderá ingressar no Brics se houver consenso entre seus membros.
Na negociação para elaboração da lista de 13 países que serão convidados a integrar o bloco na nova categoria de parceiros, sem direitos e deveres de membros plenos, o Brasil impediu a inclusão da Venezuela.
Os países estão com relações quase rompidas após Maduro fraudar a eleição presidencial de junho, como atestaram observadores independentes. A oposição está ou exilada, ou escondida, e o governo Lula (PT) não reconheceu o resultado do pleito.
“Nós sabemos a posição do Brasil. Nós não concordamos, a Venezuela está lutando por sua sobrevivência”, disse o russo em uma entrevista coletiva nesta quinta (24), último dia da 16ª reunião de cúpula do bloco.
Ele disse que discutiu o tema com Lula quando ambos se falaram ao telefone nesta semana, depois que o petista não pôde viajar por ter batido a cabeça numa queda doméstica.
“Eu conheço o presidente Lula como um homem muito decente e honesto. Estou certo que ele vai abordar a situação a parti daí. Ele pediu para eu falar com Maduro, espero que a situação se resolva”, afirmou.
Sobre a inclusão da Venezuela na lista, “é impossível fazer sem consenso”, disse Putin, que na véspera havia dito apoiar a pretensão de Maduro de aderir.
Mais cedo, Maduro havia discursado em Kazan como se tivesse sido aceito no bloco, buscando ignorar o Brasil. “A Venezuela faz parte da família do Brics.”
Ele estava lá como 1 dos 26 convidados do bloco que participaram da sessão ampliada da cúpula. Na sua saudação, passou recibo ao trabalho do Itamaraty ao citar que “aqui estão os irmãos de Cuba, Bolívia e Nicarágua”. O chanceler brasileiro, Mauro Vieira, estava presente.
Nesta quinta, o venezuelano disse que vai trabalhar pela inclusão de seu país no bloco. Maduro nem era esperado na cúpula, na qual estava representado por sua vice, mas fez uma visita surpresa para pressionar pelo convite.
Ao fim, como a Folha de S.Paulo havia adiantado na terça (22), a lista aprovada terá Cuba, Bolívia, Argélia, Nigéria, Uganda, Malásia, Indonésia, Vietnã, Tailândia, Cazaquistão, Uzbequistão, Turquia e Belarus.
Aleksandr Lukachenko, o ditador belorrusso aliado de Putin, disse à imprensa estatal de seu país que topará. O mesmo foi confimado pelo boliviano Luís Arce à rede russa RT en Español . “Eu só vou dar nomes quando houver decisão”, disse o russo.
Convite não significa adesão, claro. Antes, a China havia retomado sua campanha para que o bloco cresça com a adesão de países não alinhados com Washington.
O líder do gigante asiático, Xi Jinping, afirmou que o Brics precisa de mais membros do chamado Sul Global, o jargão da vez para denominar economias emergentes que não estão no polo americano da Guerra Fria 2.0 entre Pequim e os Estados Unidos.
Na reunião do ano passado, os chineses trabalharam na última hora para incluir o antiamericano Irã e a Etiópia na maior expansão do grupo desde sua criação, em 2006, que também trouxe Egito e Emirados Árabes Unidos a Arábia Saudita também ingressou, mas não consumou ainda sua adesão.
O Brasil era contrário a isso, não menos pelo caráter antiocidental que a mexida deu ao Brics. O chanceler Mauro Vieira, que representa o ausente presidente Lula (PT) no atual encontro em Kazan, minimiza isso, mas o Itamaraty trabalhou para arrefecer o ímpeto chinês.
Assim, ao longo dos meses que antecederam a cúpula russa, foi adotada a fórmula de convite a países para serem parceiros do Brics, sem os deveres e direitos da adesão plena. A ideia era manter certa coesão nas linhas do grupo e evitar a cacofonia que já se vê num clube com nações tão díspares.
Ao longo de sua fala, Maduro só citou Vieira lateralmente, ao concordar com a necessidade apontada pelo brasileiro de reforma de instituições globais.
Com efeito, em seu discurso no encerramento da cúpula, Vieira defendeu os pontos usuais para reforçar a relevância do Brics, mas não citou a ampliação do bloco. Qualquer alteração na lista atual precisará ser pactuada com todos os membros do Brics (nove, na prática).
Apesar de uma declaração final com terminologia vaga, algo que tende a aumentar o quão mais membros houver no Brics, na retórica a dupla China e Rússia se manteve na ofensiva.
Para Xi, o bloco “tem de liderar o processo de reforma da governança econômica global”. Há um consenso entre os integrantes do Brics de que o atual arcabouço que rege o sistema monetário do planeta, herdado da conferência de Bretton Woods (EUA) em 1944, está desatualizado.
Suas duas principais instituições, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, refletem o balanço de poder do pós-guerra, com predominância de americanos e europeus no seu comando. Mudar isso é um ponto em que Lula, Xi, Putin e os outros líderes do Brics concordam.
O presidente russo, por sua vez, deu um tom ainda mais político em sua fala na reunião final do chamado Brics+, a versão ampliada e com a presença polêmica do secretário-geral da ONU, o português António Guterres a Ucrânia diz que sua visita a um país em guerra sugere lado na disputa.
O Ocidente, diz Putin, “está usando a Ucrânia para infligir uma derrota estratégica à Rússia”. “Isso é ilusão”, afirmou. Ele defendeu a reforma do Conselho de Segurança da ONU, instância máxima da entidade, com maior representatividade do tal Sul Global.
O russo também voltou a criticar o pacote de sanções aplicado pelos EUA e aliados contra Moscou, como punição pela invasão do vizinho em 2022. Para ele, é um “regime ilegal de manipulação de moedas”, um outro tema corrente no Brics: a tentativa de tirar do dólar a primazia nas transações comerciais entre países do grupo.
Apesar de este ser um problema muito russo, devido às sanções, Lula fez a mesma defesa em discurso na quarta (23). A ex-presidente Dilma Rousseff (PT), que lidera o banco do Brics, deverá ser reconduzida ao cargo baseada na defesa desta mesma plataforma.
Outro ponto comum nas falas finais foi a condenação a Israel. Putin disse que o Oriente Médio está à beira de uma guerra total, e Vieira criticou a ação em Gaza, chamando-a de “genocídio do povo palestino”. Assoprou ao condenar o ataque terrorista do Hamas que iniciou o atual conflito, há pouco mais de um ano, mas logo virou-se contra “a reação desproporcional” do Estado judeu.
Largamente ausente dos debates oficiais, mas permeando as preocupações do grupo, está a eleição americana. Para diplomatas, a eventual volta de Donald Trump ao poder deverá acirrar ainda mais a Guerra Fria 2.0, de resto lançada pelo então presidente em 2017.
IGOR GIELOW / Folhapress