Vera Holtz chega aos 71 anos com a carreira glorificada pelo cinema e o teatro

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Decoração é autobiografia”. A frase, dita por Gloria Vanderbilt, designer, atriz e herdeira de uma das maiores fortunas dos Estados Unidos, me vêm à cabeça quando entro na casa de Vera Holtz, nos Jardins, na semana passada.

Os dois apartamentos, transformados em um, não têm paredes pintadas. A reforma radical foi feita de maneira que não se apagasse a história. Os antigos cômodos, agora abertos ou dispostos de outra maneira, deixaram seus rastros, dá para ver onde ficavam as paredes pelos recortes aparentes no teto.

Tudo lembra uma galeria. Grandes espaços, grandes obras de arte, móveis de designers europeus misturados a peças de artistas brasileiros contemporâneos. As cores dominantes são preto, branco e cinza. Um pouco de marrom. Cores primárias aparecem em detalhes nos quadros nas paredes. E, sem nenhuma explicação, uma casinha de cachorro laranja cheia de bolas de futebol miniatura surge num canto. Vera não tem cachorro. Pelo menos não neste apartamento.

Em um corredor, já na parte mais íntima, há uma fila de super-heróis. São bonecos, daqueles de colecionador, de quase um metro de altura. E, então, chego ao banheiro de Vera Holtz. Talvez seja o maior box que já vi na vida. Lá dentro, dois chuveiros daqueles quadradões, imensos, e um banco de concreto em que um adulto pode tranquilamente se deitar.

“Eu gosto de brincar de casinha”, ela diz, com aquele sotaque inconfundível de Tatuí, que parece não combinar com a sofisticação do lugar. Mas essa é uma dessas primeiras impressões que costumam fazer a gente quebrar a cara se tiver pressa para dar opinião.

Vera se diverte com isso. A atriz, que só se veste de preto, achou no armário a versão off-white de um conjunto de vestido e camisão que ela tem também em preto.

“A Bahia faz essas coisas com a gente”, ela explica, quando sai do quarto com o visual que ilustra essas imagens. Foi ideia do fotógrafo explorar o branco de Vera, inspirado pelo cabelo que ela não pinta mais há muitos anos.

Outra coisa que a Bahia fez com Vera foi deixar seus ombros, suas costas e seu colo vermelhos pimentão. Então, para esconder a queimadura, ela sugere vestir o camisão ao contrário, como se fosse um xale imenso, com a gola para baixo, tomando cuidado para esconder os botões. Também opta por clarear o batom, em vez do vermelhão que também é sua marca registrada.

E aí vi a Vera Holtz na frente de uma câmera, no lugar onde o fotógrafo determinou, iluminou —e arrastou uns móveis bem pesados para conseguir a distância de que precisava. Uma atriz, um palco, uma plateia —e uma repórter escondida, segurando um ventilador portátil emprestado do porteiro.

Interpretar, para Vera, também parece muito com uma brincadeira, e, naquela situação, é como se ela estivesse brincando de ser uma atriz famosa, sendo fotografada para uma reportagem de jornal.

“Eu estava com a mão na maçaneta do paraíso quando me arrancaram com a maçaneta e tudo”, ela diz, obviamente como piada, sobre essa onda de trabalhos novos e ousados que ela se viu fazendo e divulgando ao mesmo tempo.

Durante a pandemia, que Vera passou neste enorme apartamento, acompanhada de dois amigos, ela chegou à conclusão de que, quando o mundo voltasse a se abrir, ela ia deixar a luz entrar para então decidir como é que ia querer levar a vida dali para frente.

“Eu ia fazer 70 anos, agora já tenho 71, então pensei ‘como é que eu vou usar o tempo que eu ainda tenho? Como é que eu quero viver?’ Pensei em visitar pessoas que eu possivelmente não vou ver muito mais vezes, conhecer lugares para onde sempre quis viajar, reencontrar coisas, lugares e gente que eu gostei de conhecer, me despedir de algumas coisas mesmo.”

Mas aí o diretor Rodrigo Portella a convidou para fazer uma adaptação do livro “Sapiens – Uma Breve História da Humanidade”, do historiador israelense Yuval Harari. Um best-seller absoluto, traduzido para 60 idiomas diferentes e com dezenas de milhões de exemplares vendidos no mundo desde que foi lançado, em 2014.

“Eu já tinha lido o livro, achei que ia ser impossível adaptá-lo, mas tava um buchicho na classe artística por causa do Rodrigo Portella [diretor de outra peça que viaja pelo Brasil, ‘Tom na Fazenda’] e eu quis saber o que ele tinha pensado em fazer”, conta.

Portella queria que a narrativa fosse feminina, e que Vera tivesse sozinha em cena, mas em um palco todo aberto, de maneira que a plateia visse o que está por trás da cena, o contrarregra, a camareira, o ponto, a correria da coxia.

“Eu achei tudo ótimo, disse vamos lá, vamos fazer. Eu só não sabia que ele ainda não tinha lido o livro”, ri a atriz. É aquela risada aberta, relaxada, tão conhecida, em que ela aperta os olhos e lança a cabeça um pouco para trás, e que empresta a algumas de suas personagens de vez em quando.

Portella conseguiu tudo que queria, o que, pensando bem, foi a adaptação de sua visão teatral à obra de Harari, e não o contrário. Seja como for, deu muito certo. O espetáculo é um sucesso por onde passa, e nele Vera faz de um tudo. Atua, lógico, mas também improvisa, canta, conversa com o autor do livro e interage com a plateia e com o músico Federico Puppi, autor da trilha sonora e que a interpreta ao vivo todas as noites.

Enquanto a peça parece combinar muito bem com o estilo de Vera, que também fica bastante evidente para quem vê o seu apartamento, o filme que entra agora em cartaz, “Tia Virgínia”, de Fabio Meira, tem mais a ver com as raízes da atriz.

Assim como Virgínia, a protagonista deste drama tocante e delicado, Vera é de uma família do interior, só tem irmãs e nunca teve filhos.

Na trama, que se passa no dia de Natal, Virgínia é uma mulher que vive sozinha e que é convencida a renunciar a sua rotina para voltar a morar na casa dos pais idosos, no interior, e que agora cuida sozinha da mãe, de 99 anos, interpretada pela modelo e atriz Vera Valdez, que ninguém tem certeza se ainda está consciente.

Suas duas irmãs, Vanda e Valquíria, interpretadas pelas atrizes Arlete Salles e Louise Cardoso, chegam à casa da família com seus maridos, seus filhos e suas vidas cheias de vidas, que contrastam com a absoluta solidão de Virgínia. Cada uma das três com um ponto de vista de como as coisas, os bens, o dinheiro e a mãe catatônica devem ser cuidados.

“Esse filme toca em muitos assuntos relevantes para o nosso tempo. A longevidade, o cuidador, o abandono, quem fica com quem, o que fica com quem? Como é que essa geração mais nova, cujos pais podem viver até os 100 anos, vai resolver tudo isso?”.

Mas não tema “Tia Virgínia”. O filme não é só sobre o sufoco de conviver com quem perdeu totalmente a independência ou as mágoas e rancores que surgem inevitavelmente em todas as famílias.

E mais não digo. Não dá para dar spoiler num roteiro tão surpreendente quanto este. Só unzinho: em uma cena fundamental, a personagem de Vera tem um dos melhores ataques de riso da história do cinema, daqueles de cair da cadeira.

“Eu estudei piano, e quando você aprende música sabe que quanto mais treina, melhor fica. Então para mim não tem essa questão da repetição, eu sou muito treinada. Repeti essa cena até ficar boa. Tem uma técnica para rir em cena, mas ajuda lembrar uma situação engraçada”, ela diz, e mostra o tipo de respiração que faz para a gargalhada tomar conta de tudo.

Não parece um grande esforço, e, de fato, ela diz que não é. “Eu sou muito solar, muito brincalhona. Tive que puxar o freio para chegar no tom que o diretor queria”.

Vera ainda assina a direção artística de uma peça infantil, “Voz de Vó”, que estreia em 22 de novembro no teatro do Sesi, na avenida Paulista, e que conta a história de uma vovozinha que sofre do mal de Alzheimer e que, com a ajuda dos netos, sai em busca de suas memórias perdidas.

“Adoro o processo colaborativo, gosto de juntar gente e pensar no que fazer com uma obra, entendeu? Mas agora estou querendo dirigir um trabalho sozinha.”

E então, como se fosse o terceiro ato de uma de suas personagens, me convida para sentar na sua cozinha industrial, toda aço inox com suas iniciais escritas em furinhos na porta de um armário, passa um café, que serve em xícaras trazidas de Istambul, e abre um bolinho de banana “sem glúten nem lactose”, que depois insiste que eu traga para casa comigo.

TETÉ RIBEIRO / Folhapress

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