SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Essa é uma resenha para ser lida com trilha sonora. Tem várias opções. Os mais românticos podem ler ao som de “What the World Needs Now”, do Burt Bacharach, na voz de Dionne Warwick. Os festeiros podem dar play em “You’re My Best Friend”, do Queen. Pessoal da geração alpha que quiser optar por “It’s Nice To Have a Friend”, da Taylor Swift, que vá em frente.
De Roberto Carlos aos Beatles, de Justin Bieber a Milton Nascimento, passando rapper –agora em desgraça– P. Diddy, que estourou com “I’ll Be Missing You”, muitos artistas cantaram sobre a amizade.
Mas não é todo mundo que faz o que o comediante Will Ferrell, de 57 anos, fez neste documentário singelo e inesquecível. A premissa de “Will & Harper” é tão simples, e o resultado tão emocionante, que até parece uma jogada de marketing. Mas não, é amizade mesmo. Amizade com um comediante rico e famoso, verdade, mas também generoso, genial e disposto a aceitar as pessoas como elas são.
Depois de 30 anos de amizade e parceria profissional, Ferrell descobre, por um email, que um grande amigo, ex-roteirista do “Saturday Night Live”, então conhecido como Andrew Steele –o “nome morto” é mencionado várias vezes–, está se assumindo como uma mulher trans, Harper.
Ferrell, chocado, se pergunta como isso vai afetar a amizade deles. “Quais são as regras?”, ele questiona, retoricamente. Então, decide fazer as perguntas todas pessoalmente, em uma viagem de carro pelos Estados Unidos, na qual os dois amigos terão tempo e oportunidade de entender como tudo vai ficar dali para frente –tanto entre os dois como para Harper e o resto do mundo, certamente menos aberto a essa transformação que um comediante de Hollywood.
Logo de cara fica evidente que Ferrell não embarcou nessa história para fazer piada com a amiga, que ainda se entende com o novo guarda-roupa, os sapatos de salto e a maneira de se portar em público. Não que ele não faça piada nenhuma, mas ri com ela, não dela. Afinal, Harper também é comediante e roteirista.
Também não espere uma celebridade boazinha. Essa é uma história íntima de aceitação, que vai fazer você pensar nas suas próprias amizades. Alguém faria isso por você? Você faria isso por alguém?
Após a leitura do tal email, surge a proposta da viagem de carro, em que Ferrell acompanha Harper pela primeira vez em um encontro com sua única irmã –mas também a um jogo de basquete, um bar de beira de estrada, um supermercado de uma cidade pequena e a diversos lugares que ela frequentava antes de se assumir como mulher.
Harper ama estar em movimento, e conta durante o percurso que já viajou pelo interior dos Estados Unidos várias vezes, pedindo carona, explorando lanchonetes, bares sujos, tomando cerveja barata. E é esse território que os dois exploram juntos.
Ferrell e ela começaram a trabalhar no “SNL” na década de 1990, e ambos não foram sucessos imediatos. Ferrell era considerado careta demais, e foi justamente Harper quem entendeu melhor seu estilo. Foi ela quem escreveu as esquetes que revelaram o talento absurdista delel –e foi também quem o convenceu a fazer algumas grandes bobagens, como um filme-paródia de novela mexicana, toda em espanhol, “Casa de Mi Padre”, com Gael Garcia Bernal e Diego Luna.
Desde que se reencontram em Nova York para seguir o trajeto com o carro de Harper, um daqueles modelos vintages, com uma faixa que imita madeira na lateral, a dupla alterna momentos de relaxamento total –aquela sensação fácil de estar entre amigos com quem você pode fazer piadas politicamente incorretas ou só não falar nada por um tempo– e outros de mais ansiedade diante do futuro daquela amizade.
“Não tenho dúvidas de que Will é meu amigo, mas eu não sou mais Andrew Steele”, diz Harper, logo no começo do filme. Como fica uma amizade quando uma das pessoas muda de gênero, ou melhor, revela que vivia uma versão de si mesma com a qual não se identificava? De quem, afinal, se era amigo? E o resto do mundo, como vai agir em relação a ela agora?
O documentário tem partes leves e descontraídas, como quando os dois visitam o prédio onde gravavam o “SNL” e reencontram antigos amigos como Lorne Michaels, Tina Fey, Seth Meyers, Tim Meadows, etc. Todos artistas, mente aberta, pessoas que aceitam a transição de Harper sem grandes questionamentos.
Mas conforme o cenário da viagem muda para o interior do país, a zona de conforto vai ficando cada vez mais distante, e Ferrell e Harper têm conversas complexas e desafiadoras.
Harper revela o ódio que sentia por si mesma, pensamentos suicidas e um completo desespero nos anos antes de se tornar sua verdadeira identidade. E é aqui que Ferrell brilha, como um amigo leal, curioso e com aquele talento que falta a tanta gente hoje, de quem sabe a hora de simplesmente ver e ouvir com atenção e coração aberto quem está do lado.
Esse, talvez, seja o melhor investimento que uma pessoa pode fazer na vida. Prestar atenção, abrir os olhos, os ouvidos, a agenda, e, por que não, a carteira, para conhecer profundamente as pessoas que nos importam. Do que mais o mundo precisa?
Will & Harper
Onde: Disponível na Netflix
Classificação: 12 anos
Elenco: Will Ferrell e Harper Steele
Produção: EUA, 2024
Direção: Josh Greenbaum
Avaliação: *Excelente*
TETÉ RIBEIRO / Folhapress