SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Vou te encher de denúncias, lotar de indenizações, socar seu nome de processos”, disse o policial militar Alan Marmute de Souza, por meio de mensagens, à ex-mulher Cristiane Domingues.
A promessa foi cumprida, e o ex-marido já abriu ao menos 11 processos contra Cristiane e pessoas próximas a ela, como advogados, psicólogos e testemunhas.
Advogadas especializadas em gênero batizaram a prática de violência processual -quando o agressor aciona o Judiciário de forma abusiva com objetivo de intimidar e constranger uma pessoa ou conseguir uma vantagem indevida no curso do processo judicial.
Para elas, casos como o de Cristiane costumam acontecer quando mulheres estão em processo de divórcio, pedem pensão, quando há briga por guarda dos filhos ou quando elas alegam terem sido vítimas de violência doméstica.
A advogada Luciana Terra afirma que a violência processual é uma estratégia para silenciar as vítimas e pessoas próximas a elas. “Isso desgasta porque tira o foco”, diz ela.
O casamento de Alan e Cristiane durou poucos meses e chegou ao fim em julho. Ela diz que foi um relacionamento conturbado, em que sofria ameaças, e que o ex-cônjuge tentava distanciá-la de parentes e amigos. Afirma que ele mantinha um comportamento agressivo, abusivo e controlador.
A defesa de Alan nega as acusações e diz que a alegação de relação abusiva é uma tática da ex-mulher para conseguir anular o casamento. Ele afirma que Cristiane tem um patrimônio superior ao do ex-marido e tenta anular o casamento para acabar com a possibilidade de partilha e proteger os bens.
Cristiane relata que seus dias se resumem a lidar com os processos e as consequências deles. “Parece uma eternidade. Sinto que a minha vida está parada e não consigo sair do lugar”, diz.
“Não consigo viver outra coisa além da presença do meu agressor na minha vida. Ele se faz presente na minha vida até hoje em forma de processos”, acrescenta ela, que conta com três advogados para lidar com todos os casos.
No início de outubro Cristiane foi absolvida de uma das ações, um pedido de indenização trabalhista no valor de R$ 150 mil. Alan alegava ter sido funcionário dela em uma clínica de estética. A decisão da Justiça do Trabalho avaliou que a ação foi motivada por vingança e multou o ex-marido por litigância de má-fé –pena aplicada quando um indivíduo é acusado de agir de maneira desonesta ou com intenções impróprias durante um processo judicial, com previsão de multa de 10% do valor da causa.
Advogado de Alan Marmute de Souza, Henrique Werneck afirma que vai recorrer da decisão e volta a dizer que a discussão das partes gira em torno de uma disputa patrimonial. A defesa também nega a prática de violência processual.
“Ela fez uma série de acusações contra o marido. Todos os procedimentos indicados são respostas às investidas injustas que vêm sendo feitas contra a honra dele”, diz Werneck.
A violência processual não é uma novidade. Há notícias sobre a prática registradas no site do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) em 2012.
No caso, uma mulher tentava se separar judicialmente havia cinco anos, e o marido era investigado por litigância de má-fé, ameaças e violência. Nesse período ele ajuizou mais de 200 processos contra advogados, juízes e contra a psicóloga da ex-mulher.
Especialistas afirmam que, além da multa por litigância de má-fé, como aconteceu com Alan, casos do tipo também podem ser considerados crimes de stalking, uma vez que se trata de perseguição.
Um projeto de lei de 2019, que está pronto para ser pautado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara também trata de certa forma da violência processual.
Nele, a deputada federal Flávia Morais (PDT-GO) propõe uma emenda à Lei Maria da Penha que prevê perdas e danos para quem litigar de má-fé. Caso essa conduta seja comprovada, diz o projeto, a parte pode ser condenada a pagar uma multa, indenizar a parte e arcar com honorários advocatícios e com todas as despesas que efetuou.
Izabella Borges, advogada criminalista, especialista em violência contra a mulher e fundadora do Instituto Survivor, diz que a violência processual costuma ser praticada por homens que com acesso à Justiça e que têm condições de pagar advogados que viabilizem essa perseguição.
“As mulheres ficam abaladas, se sentem acuadas, têm vontade de desistir e acham que é uma guerra muito pesada a se comprar. Muitas acabam fazendo acordo em casos de família porque chegam no limite, não têm mais saúde mental para continuar”, diz Borges.
Na avaliação da advogada, o Judiciário está inerte no que diz respeito à violência processual. Ela menciona que existem canais, como a Ouvidoria da Mulher do CNJ, para denunciar juízes que se abstêm em casos do tipo, mas afirma que ainda há pouco retorno.
A OAB da Bahia prevê uma multa para advogados que praticarem violência processual de gênero. De acordo com o órgão, é possível uma pena de suspensão de 30 dias a 12 meses cumulada com multa a prática.
Em uma consulta realizada por advogadas, a OAB informou que a infração corresponde a toda e qualquer forma de discriminação, independentemente da expressão utilizada pelo agressor. O órgão prevê ainda a suspensão preventiva do profissional.
Para a advogada Maíra Recchia, presidente do Observatório Eleitoral da OAB-SP, a violência processual sempre existiu. “Hoje, temos uma clareza sobre isso e entendemos como pode ser combatido”, diz.
Ela cita que, neste ano, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) aprovou um protocolo para julgamento com perspectiva de gênero que deve ser aplicado em todos os tribunais do Brasil.
A medida estabelece que nos julgamentos sejam levadas em conta as especificidades das partes envolvidas, a fim de evitar preconceitos e discriminação por gênero. E traz, por exemplo, um guia com exemplos práticos para que os julgamentos não incidam na repetição de estereótipos.
Para Recchia, é preciso atenção para esta modalidade de assédio contra mulher. “É uma extensão da violência que aquela mulher já sofria dentro da sua relação”, define.
ISABELLA MENON / Folhapress