BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Os 30 anos decorridos desde o lançamento do Real não parecem pesar na memória de Rubens Ricupero. Aos 87, narra de forma vívida e em detalhes seu papel no comando da transição da URV (Unidade Real de Valor) para a moeda que trouxe estabilidade de preços ao Brasil.
Como ministro da Fazenda do governo de Itamar Franco, teve uma passagem breve, interrompida após cinco meses pelo que ficou conhecido como o “escândalo da parabólica”, quando transmissão televisiva vazada o captou dizendo “o que é bom a gente fatura e o que é ruim a gente esconde”.
“Até hoje está na internet que eu não tenho escrúpulos”, diz Ricupero à reportagem. Em retrospecto, vê o episódio como “tolice da vaidade”. “Tinha virado uma espécie de santo e aquilo acabou me desequilibrando”, afirma.
Ao olhar para o presente, o “sacerdote do real” considera que o Brasil nunca completou a estabilidade monetária com “a outra metade”, o controle dos gastos. Para Ricupero, que lança seu livro de memórias na Feira do Livro em São Paulo no sábado (29), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem boa capacidade de comunicação com a população, mas transmite a “mensagem errada”.
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PERGUNTA – Nos 30 anos do Plano Real, existe ainda algum episódio inédito?
RUBENS RICUPERO – Tem muitos, sobretudo detalhes da tentativa do Palácio do Planalto, com boas intenções, de desfigurar todo o plano. Quando estava preparando a medida provisória para o lançamento da moeda, o Itamar [Franco] mandou o ministro da Justiça, Alexandre Dupeyrat, me receber. Ele adotou um ar de inspetor escolar. Eu disse que perguntaria ao presidente quem era o ministro da Fazenda. Não podia aceitar que um assunto desse tipo fosse tratado por um intermediário.
P – Como foi a implementação do plano?
RR – Itamar me disse que queria que eu executasse o plano com a equipe que estava lá. Saí com a ilusão de que havia um plano, com tudo desenhado, etapas, datas. Não era nada disso. Eles tinham algumas ideias, mas faltava quase tudo. Tive o maior choque quando perguntei à equipe qual era o Dia D do lançamento da moeda e me disseram que não tinha Dia D. A maioria da equipe queria esperar um ano. Eu disse que, se fosse esperar um ano, quem iria introduzir a moeda seria o Lula, porque ganharia a eleição.
Todos os candidatos eram contra o real. Ganhar a eleição era condição sine qua non para ter o Plano Real. A equipe me disse que três meses era o tempo mínimo [para o lançamento]. Itamar bateu o martelo: 1º de julho de 1994. Começou o meu papel, que era explicar à população o que dessa vez ia dar certo. Então me tornei, como Itamar dizia, o sacerdote do real.
P – Como recebeu essa alcunha?
RR – Pedi para conversarem com editores dos jornais, analistas de pesquisas de opinião para ter uma ideia de qual era a imagem do Plano Real. Quase todos achavam que o plano parecia ser muito bom tecnicamente, mas muito complexo. Um deles disse que o real precisava ter uma cara. O primeiro programa, que foi ao ar em cadeia nacional de televisão e rádio, foi gravado no meu gabinete do Ministério da Fazenda. Me sugeriram depois falar na hora do almoço, dizendo que teria menos audiência, mas seria ouvido pelas donas de casa, que formam a opinião pública.
Eu procurava falar a linguagem da população, não o economês. Por exemplo, quando o texto dizia “não compre carne bovina, que está muito cara, compre carne suína”, eu mudava para “não compre carne de vaca, compre carne de porco”. Isso teve resposta. Eu tinha caixas cheias de cartas e telegramas de gente me agradecendo.
P – Qual outro papel o sr. teve?
RR – Tive que proteger a equipe contra as pressões ou do Congresso ou do Palácio do Planalto. Sem o Itamar, não teria existido o Plano Real. Agora, como todo político, tinha instintos populistas. Ele queria aumentar o salário mínimo de uma maneira que não era possível. Hoje em dia, todo mundo fala de como foi bom preparar o [Plano] Real. Ninguém se lembra que, em 1994, a Polícia Federal ocupou à mão armada o edifício do Ministério da Justiça. Eles tiveram que ser desalojados com tanques de guerra. Havia uma revolta, as pessoas queriam aumento. O Itamar sofria essa pressão, que ele transferia para mim.
P- Tinha divergências com a equipe?
RR – O Itamar estava na sua lógica e eu estava na minha. Só que ele pensava que eu ia me dobrar e eu não me dobrava. Era um desgaste enorme. Cada vez que me telefonavam do Palácio do Planalto, eu ia com o coração na mão. A minha participação no [Plano] Real se resume àqueles cinco meses. Foram muito intensos. Se eu não tivesse atuado da maneira como eu atuei, não teria havido o real.
No final, ele [Itamar Franco] sempre se rendia ao bom senso e nunca tentou forçar a mão. Na véspera da moeda entrar em vigência, ele me telefonou. “O senhor acha que vai dar certo lançar essa moeda sem congelar os preços, sem tabelamento?” Eu disse que foi o que fez o Plano Cruzado fracassar. Ele me disse que, se não desse certo, a responsabilidade seria minha.
P – Confiava, de fato, que o Plano Real daria certo?
RR – Eu achava que ia dar certo. Agora, esperava que a inflação caísse mais depressa do que caiu. Foi essa a raiz daquele episódio da parabólica. No primeiro mês, a inflação acabou sendo o dobro do que a equipe pensava que ia ser. O motivo principal era a metodologia. Os índices de inflação no Brasil captam os preços do dia 15 ao dia 15. Nós introduzimos a moeda no dia 1º de julho. Então, ela já trazia uma carga de 15 dias. Isso acabou perpetuando aquele resíduo, mas não era um aumento real.
P – O sr. falou sobre o episódio da parabólica
RR – No dia 1º de setembro de 1994, eu estava preocupado porque estava se criando a impressão de que a moeda tinha dado errado. Resolvi fazer um esforço concentrado, dei 25 entrevistas. Estava no meu gabinete aguardando o sinal para a última entrevista, conversando com o repórter Carlos Monforte. A maior parte das bobagens que eu disse eram tolices de vaidade. Quando fui a Pernambuco, vinham me beijar a mão. Eu tinha virado uma espécie de santo e aquilo acabou me desequilibrando.
O jornalista me perguntou se eu não achava que a moeda já tinha fracassado e eu disse que não porque os sinais para o mês seguinte eram de que a inflação estava caindo vertiginosamente. Ele perguntou por que não dizia isso na entrevista e respondi: “Até diria, porque eu não tenho escrúpulos. O que é bom a gente fatura e o que é mau a gente esconde.” Em seguida, disse que não podia dar essa notícia porque eu tinha um compromisso com a equipe.
Estava mostrando que eu tinha escrúpulos, o contrário do que eu estava dizendo. Até hoje está na internet que eu não tenho escrúpulos. No dia seguinte, telefonei para o Itamar e disse que tinha perdido a credibilidade. No início ele disse que eu estava exagerando, mas viu que a coisa cresceu, e eu acabei saindo.
P – Tem arrependimento?
RR – O único arrependimento é não ter visto com mais realismo os meus limites. De ter acreditado, num certo momento, que o real dependia basicamente de mim. Hoje eu teria mais sabedoria de compreender as minhas limitações.
P – Como lidou com esse episódio?
RR – Para minha família, foi muito penoso. Assumo total responsabilidade pelo erro que cometi. Mas fiquei arrasado. Quando o Sérgio Amaral, que trabalhava comigo, contou o que estava acontecendo, eu me senti como se fosse uma folha de papel transparente, que ia desaparecer. Foi um golpe terrível. Tinha medo de que aquilo pudesse comprometer [o real]. Os fatos mostraram que, na verdade, eu já tinha cumprido o meu papel. Embora a minha participação tenha sido muito modesta, vejo com satisfação. Quando você olha para a Argentina, há muitas diferenças com o Brasil, mas uma das principais é que os argentinos não fizeram o que nós fizemos 30 anos atrás, que foi acabar com a hiperinflação.
P – Uma solução nos moldes do Plano Real resolveria o problema da Argentina?
RR – O problema deles era diferente. O nosso principal problema era a correção monetária, a indexação. A grande inspiração de gênio da equipe foi a ideia de que a nossa inflação tinha o caráter de inércia. Devido à correção monetária, já começava cada mês com o índice do mês anterior. Então, virava o efeito de bola de neve. Acho que a Argentina nunca teve algo parecido. O que havia em comum, entre nós e eles, era a ameaça da hiperinflação.
P – Quais foram as lições aprendidas com planos anteriores que serviram de diferencial?
RR – Três lições vieram sobretudo do Plano Cruzado. A primeira é o caráter inercial da inflação. A segunda foi a inutilidade, até o caráter contraproducente, dos controles de câmbio, do congelamento dos preços. E a terceira é a desnecessidade, até a inconveniência dos choques, da surpresa. Naquela época, achava-se que para combater a inflação tinha que ter o efeito-surpresa. No caso do real, tudo foi explicado, antecipado. Isso ganhou a confiança da população.
P – Hoje, o sr. acha que falta comunicação ao governo para popularizar as agendas econômicas?
RR – O Lula tem uma boa capacidade de comunicação, só que ele comunica a mensagem errada. A mensagem de ter que gastar, fazer programas assistenciais. Falta alguém que comunique a mensagem certa. O Brasil nunca completou a estabilidade monetária com a outra metade, que é o controle dos gastos, para que os gastos caibam dentro do Orçamento. O Fernando Haddad, às vezes, faz isso [comunicação] muito bem.
P – O Brasil continua discutindo a sustentabilidade das contas públicas. Para o sr., o país errou nesse processo?
RR – O governo tem tido um desempenho, a meu ver, razoável. Razoável porque ele teve uma herança maldita do [governo] Bolsonaro. O desempenho só não é melhor porque nem o PT nem o Lula aprenderam a lição do passado. Continuam com aquela ideia de que a popularidade depende das despesas e não se dão conta de que não é verdade. Não vai ser com trapalhadas de querer enfiar a colher torta na Petrobras, de querer ditar qual vai ser o conselho da Vale. Com isso, ele [Lula] está dando um tiro no próprio pé, porque não vai ter investimento. Se não tiver investimento, não vai ter crescimento, e, se não tiver crescimento, não vai ter emprego.
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RAIO-X
RUBENS RICUPERO, 87
Diplomata de carreira, exerceu funções políticas: foi assessor internacional do presidente eleito Tancredo Neves e assessor especial do presidente José Sarney, de 1985 a 1987. Como ministro da Fazenda, em 1994, no governo Itamar Franco, ficou conhecido como “o sacerdote do real”. Cursou a Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) para, depois, prestar concurso para o Itamaraty. Foi embaixador em Washington, Buenos Aires e Roma e representante junto a órgãos da ONU (Organização das Nações Unidas).
NATHALIA GARCIA / Folhapress