BERLIM, EUA (FOLHAPRESS) – “De fato, talvez não seja mais possível falar sobre o Ocidente como um único ator geopolítico,” diz Timothy Garton Ash em análise publicada pelo Conselho Europeu de Relações Exteriores.
Nela, o historiador e professor de Oxford descreve uma Europa afastada dos Estados Unidos, incapaz de se manter unida diante da nova administração Donald Trump. Além disso, teria sido seduzida pelo papel de árbitro moral do planeta em um contexto em que esse papel não cabe mais.
O texto, assinado junto com dois colegas, se debruça sobre os resultados de uma pesquisa global que mostra boa parte deste “novo mundo” relativamente animado com a segunda temporada de Trump na Casa Branca. Europeus, britânicos incluídos, são a notável exceção.
Apenas 1 em cada 5 europeus vê os EUA como aliados, mostra o levantamento. Eram 31% em 2023, contra 22% agora. Quase metade dos americanos, porém, percebe a Europa como parceira. A fatia quase não variou nos últimos dois anos, indo de 44% para 45%.
A disparidade entre as percepções encontra explicação fácil na figura controversa de Trump, mas a questão tem muitas camadas. O presidente americano e seus oligarcas, como descreveu Joe Biden, exploram nervos expostos da União Europeia (UE).
O ponto da sensibilidade econômica surgiu já na campanha eleitoral americana. A Europa, como diversos outros parceiros e adversários comerciais, seriam tarifados por Trump. A bravata, no caso europeu, explora a dependência do continente dos EUA, crescente desde o advento da Guerra da Ucrânia.
O parceiro norte-americano não é apenas o fiador da Otan, a aliança militar ocidental que se vê compelida a conter a Rússia, mas também seu maior fornecedor de gás, valioso depois que os gasodutos russos se transformaram em armas de dissuasão.
Os EUA respondem também por um quinto das exportações de carros, um setor fragilizado pela competição chinesa. Trump quer fábricas alemãs nos EUA e não carros vindos da Alemanha, afirmou em um discurso. As montadoras, nesta semana, em carta para a Comissão Europeia, pediram uma “grande barganha” com o presidente eleito, que toma posse na segunda-feira (20).
Guerra tarifária a Europa já tem. No ano passado, o bloco elevou para 45% os impostos sobre carros elétricos chineses. A Alemanha, em crise econômica e ávida por manter seu mercado de modelos convencionais na China, foi voto vencido.
O setor flerta com a desindustrialização. A maior montadora da Europa, a Volkswagen, negocia fechamento de fábricas e demissões, algo nunca visto em 88 anos de história.
Uma disputa tarifária com os EUA, segundo economistas, faria a Alemanha perder 1 ponto percentual no PIB, que já ronda o campo negativo há dois anos. Pode soar paradoxal, mas 64% dos 500 principais líderes empresariais do país estão otimistas diante de um novo governo Trump. Eram 54% em 2016.
O momento alemão de desesperança explica os números: o republicano vai prejudicar a economia, mas provavelmente não muito.
Mais recentes, as ameaças advindas da chamada nova economia não são menos complexas. Elon Musk, cabo eleitoral de Trump e maior doador de sua campanha, empreende uma ofensiva populista no continente. Insulta políticos como os primeiros-ministros Keir Starmer e Olaf Scholz, advoga a libertação de um supremacista branco no Reino Unido e adula a candidata de extrema direita na Alemanha.
Sua atuação política, tratada como interferência em vários países, é investigada pela Comissão Europeia. O problema não é o proselitismo digital de Musk, mas a eventual manipulação de impulsionamento desse conteúdo no X. A legislação europeia sobre o assunto, a mais avançada do mundo, já é usada para investigá-lo desde 2023. Para o bilionário, o Digital Services Act é censura.
Se Musk prefere sublinhar seu conceito controverso de liberdade de expressão, Mark Zuckerberg foi direto ao ponto na semana passada. Após acabar com a moderação de suas plataformas, o CEO da Meta pediu ajuda a Trump para combater o arcabouço legal europeu. Só sua empresa já pagou “mais de US$ 30 bilhões” (R$ 180 bilhões) em multas em duas décadas.
A pregação ganha adeptos dentro da própria Europa. Para os blocos de direita e ultradireita, que cresceram de forma inédita nas últimas eleições do Parlamento Europeu, a legislação digital é sintoma de um ambiente regulatório excessivo, problema crônico no bloco. Algo parecido é especulado na questão ambiental, cujo retrocesso é bandeira comum entre os populistas do continente.
São algumas das divisões que Garton Ash observa em sua análise. Há muitas outras. A Starlink de Musk estaria negociando um novo sistema de satélites com a Itália de Giorgia Meloni. Concorreria com um modelo europeu, ainda em desenvolvimento, além de deixar informações sensíveis à disposição da empresa.
A primeira-ministra italiana, ao mesmo tempo, se credencia como interlocutora de Trump e de Musk. Internamente, a questão virou uma disputa ideológica, com a ultradireita de Meloni afirmando que os críticos sabotam o avanço econômico e tecnológico da Itália.
O setor de segurança, por sinal, é um dos pontos mais vulneráveis do continente. Trump cobra mais investimento deles em defesa, 5% do PIB, enquanto a maioria dos países mal alcança o nível de 2%, a exigência atual. Há pouca unidade sobre o assunto, assim como o apoio incondicional à Ucrânia deixou de ser unanimidade há tempos.
Para uma Europa em crise econômica, com fronteiras ameaçadas, ondas nacionalistas e anti-establishment, só faltava Trump para piorar um cenário já complicado, descreve em relatório a consultoria Eurasia. “Trump representa uma das mais sérias provações da unidade europeia até hoje e testará o ditado de que a UE sempre se une em uma crise.”
Garton Ash alerta para o que não deve ser feito. “Para exercer a influência que está ao seu alcance, os europeus precisam reconhecer o advento de um mundo em transição. Em vez de tentar liderar uma oposição liberal global a Trump, eles devem entender seus próprios pontos fortes e lidar com esse novo mundo da forma como o encontram.”
Falta combinar com os próprios europeus.
JOSÉ HENRIQUE MARIANTE / Folhapress