VENEZA, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – Desde que o tribunal da internet começou a cancelar artistas com conduta pessoal suspeita, cineastas como Woody Allen, Luc Besson e Roman Polanski, todos com acusações de abuso sexual nas costas, passaram a ser boicotados por grandes eventos e premiações.
Mas não pelo Festival de Veneza. Tanto é assim que, nesta edição, os três diretores foram convidados a exibir suas novas obras na mostra italiana. O que, é claro, gerou controvérsia -no chão de uma das principais rua do Lido, alguém pichou “Não deem o Leão a um estuprador”, referência a Besson, o único dos três com o filme na disputa pelo prêmio máximo.
É bom esclarecer: as investigações sobre Allen nunca o consideraram culpado de nada, e Besson já foi inocentado pela Justiça da França. E Polanski, apesar de condenado por estuprar uma menor nos anos 1970, já há décadas conseguiu o perdão da própria agredida. Ainda assim, a simples presença de filmes desses diretores em festivais gera faíscas.
Mas não seus filmes. Os três diretores apresentaram em Veneza obras com viés cômico, descompromissadas, sem muito interesse em causar reações extremas.
Allen foi ao Lido exibir, fora de competição, “Coup de Chance”, seu primeiro filme falado em francês -se tem tido dificuldades de produzir longas nos EUA, a França tem se demonstrado bastante receptiva ao diretor. É a história de uma jovem parisiense que reencontra um ex-colega de escola por acaso, na rua, iniciando com ele um romance. Ela é casada, mas ao rever o amigo percebe que sua vida amorosa era pura rotina. Mas seu marido descobre o romance e tratará de dar um jeito na situação.
O filme é um Woody Allen saboroso, que se parece com dezenas de outros filmes do diretor, só que com um roteiro um bocado melhor do que grande parte dos filmes mais recentes do cineasta. Em cena, ela volta a temas como destino, coincidência e acaso, e sua assinatura autoral continua tão perceptível que, embora o longa se passe em Paris, não fosse pela língua, pensaríamos que é mais uma obra de Allen com pano de fundo em Nova York. O bom elenco inclui Lou de Laâge, Melvl Poupaud e Niels Schneider.
Besson teve seu “DogMan” recebido com inesperados aplausos pela imprensa. Caleb Landry Jones interpreta um sujeito marginalizado, que na infância foi abandonado pela mãe e sofreu maus tratos do pai e do irmão. Só os cães de sua casa lhe deram algum tipo de afeto.
Já adulto, ele toma conta de uma gigantesca matilha -os cachorrinhos o ajudam a pagar as contas, inclusive, performando inacreditáveis assaltos a residências luxuosas. Um dia, a polícia descobre essa forma de ganhar dinheiro e detém o rapaz, que conta sua vida para a psicóloga da prisão. E, assim, o público fica conhecendo a história desse homem que tem vários motivos para gostar mais de cachorros do que de seres humanos.
É um filme light e sem maiores pretensões -a não ser tornar Jones um candidato elegível às indicações do Oscar de melhor ator. Mas é um longa um bocado tolo e sem muito rigor com a mensagem que quer transmitir -o protagonista se veste como mulher, mas parece fazer isso antes para se tornar uma figura mais expressiva (e o filme mais fincado na sensibilidade identitária atual) do que para verdadeiramente discutir a questão de gênero. Quem gosta de Besson há de se comover, mas é improvável que aqueles que não gostam se interessem pelo filme por mais de meia hora.
Polanski, que completou 90 anos no mês passado, não apareceu no festival para divulgar “The Palace”, uma comédia com elenco coral, toda passada em um hotel luxuoso nos Alpes suíços. A história se passa na virada de 1999 para 2000, quando o mundo vivia sob o medo de haver uma pane mundial nos computadores, o então temido “bug do milênio”.
Os personagens são excêntricos. Mickey Rourke, cada vez mais irreconhecível pelas intervenções cirúrgicas no rosto, interpreta um milionário que se esqueceu de fazer reserva para o Réveillon e exige da gerência uma suíte luxuosa. Fanny Ardant dá vida a uma marquesa que alimenta seu cachorro com caviar e se desespera quando o bichinho tem uma crise intestinal. E o português Joaquim de Almeida interpreta o doutor Lima, cirurgião plástico brasileiro (inspirado em Ivo Pitanguy, segundo o ator) que é perseguido por mulheres de rostos praticamente iguais, todas ultraplastificadas, querendo marcar uma consulta para um novo retoque facial. E por aí vai.
Não fosse por uma piada sexual um pouco mais ousada, envolvendo um velhote que morre em pleno ato e deixa a sua esposa bem mais jovem presa em seu órgão que não perde a rigidez, o filme tem um tipo de humor infantil, escatológico, que poderia figurar junto com algumas comédias de Adam Sandler no cardápio da “Sessão da Tarde”. É quase inacreditável que o cineasta que já fez filmes como “Chinatown”, de 1974, ou o mais recente “O Oficial e o Espião”, de 2019, tenha optado por uma comédia tão popularesca para, possivelmente, encerrar sua carreira.
Ou talvez tenha sido proposital: após uma obra marcada por questões bastante pesadas -o terror e o ocultismo de “O Bebê de Rosemary”, de 1968, o banho de sangue de “Macbeth”, de 1971, ou o amor destrutivo em “Lua de Fel”, de 1993-, Polanski talvez tenha preferido encerrar sua obra de maneira serena e, para o bem ou para o mal, bastante surpreendente.
Em Veneza 2023, uma coisa parece clara: os cancelados, apesar da demonização que há anos andam sofrendo, têm procurado mostrar um mundo mais leve em seu cinema. Bem diferente do que eles próprios têm enfrentado.
BRUNO GHETTI / Folhapress