Zelenski terá dificuldade em deixar o poder absoluto, diz biógrafo

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A decisão de ficar em Kiev e enfrentar as bombas russas que caíram na madrugada do dia 24 de fevereiro de 2022 foi a mais importante já tomada pelo presidente Volodimir Zelenski, a régua pela qual seu legado será medido.

Mas o futuro mais imediato do líder parece menos claro, ameaçado pelo risco de ele cair nas tentações autoritárias de quem comanda um país com poderes quase absolutos em meio à maior guerra em solo europeu desde o conflito mundial encerrado em 1945.

A opinião é do autor da primeira grande biografia sobre o comediante que deixou o papel de presidente acidental na TV para assumir o poder real em 2019, o jornalista americano Simon Shuster. “O Showman” (Editora Record, 420 págs., R$ 104,90) chega às livrarias no dia 26.

Em conversa com a reportagem por Zoom de Nova York, onde mora, ele não exagera nos elogios a Zelenski, embora diga que “não há erro em chamá-lo de herói”. Isso dito, como o livro deixa claro, o presidente deposita todas as suas fichas na sua capacidade de persuadir aliados a ajudar Kiev —algo que está em xeque agora.

Questionado se Zelenski perdeu o charme ou se a guerra ficou pesada demais, Shuster diz: “A história dele ficou mais difícil de ser vendida”. Ele se refere ao fracasso da contraofensiva do ano passado.

Mais importante para quem espera uma obra hagiográfica, o que seria quase natural dado o acesso sem precedente que Zelenski lhe franqueou em bunkers, palácios e trens blindados, é a descrição de alguém que flerta com o autoritarismo.

“É sempre difícil para líderes largarem o poder absoluto, e a lei marcial dá isso a Zelenski. Ainda há jornalistas independentes, como eu. Mas a democracia está em suspenso, pausada. Temos de ver como ele vai voltar à democracia. Será difícil, espero que ele consiga”, diz Shuster.

Um teste está em curso agora, com a decisão tomada por Zelenski de demitir o comandante das Forças Armadas, general Valeri Zalujni, uma figura tão popular quanto o presidente.

“O entorno de Zalujni, como mostro no livro, estimulou a ideia de ele ser candidato a presidente. Ele não se envolveu pessoalmente nisso, mas foi frustrante para Zelenski”, diz o jornalista. O texto é presciente acerca da rota de choque: o general mal disfarça a queixa de ver que o político abandonou a delegação inicial que lhe dera para conduzir a guerra.

Para Shuster, o sucesso inicial da defesa de Kiev, obra de Zalujni, precisava ser complementado por outras vitórias a fim de mobilizar a máquina que despejou, até outubro passado, R$ 1,2 trilhão em armas e financiamentos. “O general preferia um avanço mais lento, numa frente rumo à Crimeia [anexada por Putin em 2014].”

As desavenças se tornaram públicas, culminando na demissão ora anunciada de Zalujni. “O perigo para Zelenski é se ele [o general] decidir entrar na política”, avalia o biógrafo.

Shuster foi um dos primeiros jornalistas a relatar que havia dúvidas sobre o rumo da guerra, em uma matéria de capa da Time em outubro passado. Isso lhe valeu uma despropositada acusação de russofilia, que desconsidera sua história familiar —assim como Zelenski, é um judeu russófono de família ucraniana.

O repórter nasceu há 41 anos em Moscou, e emigrou em 1989 para os EUA, fugindo do colapso soviético. Em 2006, ele voltou à capital como jornalista de veículos independentes russos, o que lhe valeu o passaporte para entrar na Time em 2013 e produzir reportagens que lhe valeram banimento do país natal.

“Eu tenho família em Odessa [cidade portuária ucraniana]. Minha tia, meu primo e minha sobrinha tiveram de fugir para Praga, e só voltaram quando a situação melhorou. Ele é um cirurgião de traumas, atende soldados”, afirma.

Na via contrária, isso garante o tom pró-ucraniano ao texto no mérito da guerra, que ele não nega. “O importante é buscar um equilíbrio justo. Eu não trabalho para o presidente”, diz. Com efeito, artigos anteriores seus relacionando paramilitares de Kiev com o neonazismo foram mal recebidos.

O coração do livro, que sustenta a ideia de que a guerra narrativa é mais importante do que a real ao fim para Zelenski, são os detalhes que o acesso lhe permitiu. Aqui o leitor descobre que um atordoado presidente anunciou a eclosão da guerra para sua influente mulher, Olena, no russo natal que ambos falavam e hoje abandonaram, ao menos em público e nas conversas do líder com Shuster.

Até então, conta o relato, Zelenski ao contrário de Zalujni achava que Putin estava apenas blefando ao posicionar tropas ao redor da Ucrânia. Ele havia recusado ofertas para sair de Kiev feitas poucos dias antes por mandatários ocidentais. “O heroísmo, aquela decisão que ele tomou vai definir seu legado, seja lá o que for acontecer”, diz o autor.

Outros detalhes saborosos surgem, como a dúvida acerca de ficar no bunker nuclear sob a Presidência ucraniana, uma estrutura que provavelmente tinha até “a privada do presidente” em alguma planta em Moscou. Zelenski não queria, mas foi convencido após se certificar que o Wi-Fi funcionava direito para seu onipresente smartphone.

O livro é menos detalhista acerca da vida pregressa de Zelenski, virtual desconhecido fora do mundo ucraniano e russo antes da Presidência, e parece menos confiante no relato da criação do político. Ele foi um comediante que lutou seu caminho para o sucesso e, vivendo em Moscou, ficou milionário com produções para a TV russa. Talvez tenha tido até Putin em uma plateia eventual.

Antes da guerra, sua aprovação estava abaixo dos 20%. A transmutação de um líder contestado num herói nacional também tem algo de críptico: apesar da proximidade, o controle de imagem é sempre de Zelenski, algém que calou adversários e centralizou o noticiário da guerra em um programa único, a Telemaratona.

Um problema é que a história do livro acaba no fim de 2022, quando o clima era de otimismo em Kiev. “O próprio Zelenski me perguntou por que eu ia escrever. Depois, ele me perguntava qual o final do livro”, brinca o autor. E qual o epílogo que ele, Shuster, antevê? “Em Kiev, estão muito mais otimistas do que parece. Eles nos surpreenderam várias vezes, acho que não seria uma boa ideia dá-los por vencidos”, diz.

IGOR GIELOW / Folhapress

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