A arte dá sentido à nossa existência, diz escritora Rosa Montero

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “A literatura é a prova inequívoca de que vida não basta”. Foi com essa frase do poeta Fernando Pessoa que a escritora espanhola Rosa Montero iniciou sua defesa de que a vida não é suficiente e, por isso, buscamos na arte algum sentido que explique a existência humana.

A autora deu início a temporada de 2023 do Fronteiras do Pensamento nessa segunda-feira (30), em São Paulo, com a reflexão de que o destino humano, diante do fim inevitável que é a morte, parece solitário e inútil -mas é através da criação que tentamos nos conectar uns aos outros.

“Todas as nossas vidas são mais pequenas que nossos sonhos”, afirma, revelando que quando criança sonhava em ser astronauta ou trapezista. “O tempo, um jardineiro louco, vai cortando os ramos de nossas possibilidades” e, diante dessa dureza imposta pela vida, sentimos a necessidade de alguma ilusão.

A escritora usa como exemplo um caso da Segunda Guerra Mundial. Quando uma biblioteca em Londres estava em pedaços após os bombardeios alemães, algumas pessoas procuravam nos escombros livros para que pudessem ler.

Ao contrário do que poderíamos concluir em um primeiro momento -de que aquelas pessoas buscavam uma maneira de se distrair ou fugir da realidade- Rosa defende outra hipótese: aquelas pessoas estavam lutando contra Hitler. Isso porque está na leitura e na escrita a busca por outra realidade possível. “Através daqueles livros, lembravam que existia uma maneira melhor de viver”, defende.

“Todos formamos parte de um imenso murmúrio. Como leitores e escritores, tentamos dar um sentido ao caos”, sugere. Guiada por uma frase do pintor francês Georges Braque, que ela mostra ter tatuada na perna – “a arte é uma ferida feita de luz” -, a autora afirma que escreve para dar sentido à dor, ainda que já saiba da inexistência desse sentido.

A realidade, aliás, é um conceito questionável, uma construção social. De forma metafórica, Montero cita que o olho humano tem um ponto cego, mas que somos incapazes de percebê-lo quando olhamos ao redor. “Nossa realidade é moldada pela nossa mente, para que possamos ver aquilo que estamos preparados para ver”, explica.

Como exemplo, ela conta a história de Fue Droctulft, guerreiro lombardo do século 6, citado em um conto do escritor argentino Jorge Luis Borges. Violento e orgulhoso, vagava com seus companheiros pelas cidades da Europa, para destruí-las. Mas tudo mudou quando Droctulft chegou a Ravena, cidade italiana: a beleza da paisagem o embriagou, levando-o a se revoltar contra seus companheiros e tentar impedi-los de destruir a cidade.

Para Rosa, a mensagem contida na história do guerreiro é a de que a beleza que impacta é capaz de tornar as pessoas melhores. “Sempre acreditei que Droctulft sentia uma melancolia e uma inexplicável nostalgia de ser melhor, mas que não conseguia explicar. Quem explicou foi Ravena”, conclui.

Para ela, todos podemos ser Droctulft quando somos tocados pela arte que, por um instante, muda o significado de nossas vidas. “A vida, por si só, é uma narrativa. Nossa memória, um relato que muda conforme vivemos. Nessa lógica a identidade é, por fim, o relato que fazemos de nós mesmos”, afirma. Os escritores e artistas, nesse contexto, são pessoas que se dedicam integralmente ao narrar.

A criação se coloca como conexão entre as emoções humanas e o mundo em que vivemos, a possibilidade de reunir nossas emoções em busca de um sentido em comum, um consolo diante da morte inevitável. “Às vezes possuímos uma dor, mas para senti-la precisamos colocá-la em um personagem ou uma poesia”, afirma.

Montero terminou sua reflexão contando uma história, referente a uma freira em clausura monástica. Isolada do mundo, a religiosa fabricava doces para vendê-los através de uma pequena passagem na porta do mosteiro. Certo dia, uma mulher que morava em frente ao mosteiro lhe disse que, se precisasse de algo do mundo exterior, a freira poderia pedir-lhe.

Trinta anos depois, já idosa, a religiosa pediu para subir até a sacada da mulher para ver, do balcão, como era a vista do mosteiro. “Ela observou a paisagem por alguns minutos e depois voltou a se isolar, até morrer. A arte nos proporciona isso: um instante de sentido, em que conseguimos nos enxergar dentro do cardume, para depois voltar às nossas individualidades e nos resignarmos à morte”, conclui.

O ciclo Fronteiras do Pensamento segue até outubro com programação online e presencial nas cidades de São Paulo e Porto Alegre, com nomes como Nadia Murad e Michel Sandel.

Fronteiras do Pensamento – 17ª Temporada

De 29/5 a 2/10

Assinante Folha tem 50% de desconto

Onde saber mais: fronteiras.com

ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress

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