FOLHAPRESS – O cinema paulista, até meados dos anos 1990, sempre esteve de corpo e alma na cidade de São Paulo. A retomada e seu boçal desejo por “cinema de qualidade” e seus roteiros palavrosos perderam interesse pelo compasso das ruas e o contato com o que há de extraível na geométrica paisagem concretada da metrópole.
Assim, a cidade, em sua real imagem na tela, pulsante, sumiu de forma significativa do mapa cinematográfico dos anos 2000 em diante. Mesmo as filmagens em locação, agora bem mais raras do que na época do cinema moderno dos anos 1960 e o da Boca do Lixo, grosso modo colocam a cidade como um pano de fundo mumificado.
Diante desse horizonte, “A Cidade dos Abismos” chega como uma obra impressionante e única. Não só como uma adição às preciosas exceções com os filmes que Carlos Reichenbach faria até sua morte, em 2012, e outros, de cineastas como Ugo Giorgetti, Christian Saghaard, Paolo Gregori, Helena Ignez e Jairo Ferreira. Mais que isso, o filme de Priscyla Bettim e Renato Coelho recupera uma dinâmica que passeia por referências estéticas caras à história de nosso cinema, sobretudo a do experimental.
O filme acompanha três personagens que se conhecem num balcão de bar em noite de véspera de Natal, e que se unem para descobrir quem matou uma prostituta, Maya. Amiga da assassinada, Glória, atuação fortíssima da cantora e compositora Verónica Valenttino, é uma mulher trans que tem na prostituição a única forma de sobrevivência.
Bia, papel da sempre ótima Carolina Castanho, mulher da classe média que trabalha na Cinemateca Brasileira, carrega uma pesada crise existencial digna dos filmes de Jean Garrett. Imigrante africano, Kakule, forte presença de Guylain Mukend, é o dono do boteco.
Em suma, todos são marginais em alguma instância. E, mesmo abatidos pela melancolia que a cidade dura lhes causa, sobrevivem intensos entre os abismos de uma São Paulo essencialmente espectral e sombria, mas salpicada pelo insistente calor humano de seus personagens.
Uma São Paulo, aliás, à semelhança da poesia de Roberto Piva e de Claudio Willer. Estas últimas guiam a forma como São Paulo aparece em “A Cidade dos Abismos” -aos fragmentos, entre luz e sombras, os icônicos horizontes coalhados de edifícios e um bravo sol surgindo ao fundo para dar vida e esperança aos abatidos prisioneiros da cidade.
Escolha dos diretores, deter-se ao que está à margem do sistema é também uma intenção política (da imagem), e a coincidência com certos cinemas de ponta realizados no Brasil é uma decorrência nada ocasional. As filmagens em 35mm, 16mm e Super-8 possibilitaram uma maior experimentação formal e, por consequência, uma aproximação com uma fina filmografia feita pelo cinema brasileiro.
O que “A Cidade dos Abismos” tem de mais incrível é desenhar toda uma origem e trajetória estética que fundamentam, de fato, o que é a cidade de São Paulo representada em imagem de cinema, texto literário, música e teatro. Maior referência do que seria cinema de vanguarda no Brasil, o mítico “Limite”, de Mario Peixoto, aparece pela moviola que Bia opera na cinemateca.
Alguns dos planos do filme nos aparecem degradados pelo tempo e dialogando com uma São Paulo em ruínas que é incisivamente exposta numa tomada em que a rua do Triunfo, outrora centro da grande era dourada do cinema da Boca do Lixo, agora é uma paisagem de degradação material e feiura.
O entrelaçamento de elementos, sempre em relevo visível, é a dinâmica por excelência de “A Cidade dos Abismos”. Arrigo Barnabé, um dos nossos grandes músicos, aparece invisível e também em cena executando uma trilha sonora que remete tanto à Vanguarda Paulista da qual ele fez parte como ao relevo grave que Rogério Duprat imprimiu nos dramas existenciais dos filmes de Walter Hugo Khouri.
Para um filme que aparentemente se passa nos anos 1980, o personagem que Arrigo faz aqui não será outro que não o Anjo, protagonista de “Cidade Oculta”, de 1985, de Chico Botelho. O aspecto sombrio e extremamente estilizado de “A Cidade dos Abismos” tem mesmo algo desse neon-realismo do cinema paulista daqueles anos. O clima, inclusive, está mais para “Anjos da Noite”, de 1987, de Wilson Barros.
O clima, mas a abordagem do centro da cidade, sem dúvida, é o do cinema moderno e marginal feito em São Paulo entre nos anos 1960 e 1970, e as referências sendo a fragmentação pop de “O Bandido da Luz Vermelha”, de Rogerio Sganzerla, e de “O Pornógrafo”, de 1970, de João Callegaro.
Enquanto isso, o filme de Bettim e Coelho não deixará de mostrar uma linha que vem do 1931 de “Limite” ao tempo presente, onde uma arte de rua e completamente escanteada mostra resistência contra a arte domesticada e ordinária de uma indústria cultural hoje bastante perdida.
A teatralidade toma presença forte no filme e vemos alguns imigrantes africanos que residem no centro cantando para a câmera suas canções. E também o “cameo” do padre Júlio Lancellotti. Ele, acompanhado de Arrigo no piano, faz a missa de sétimo dia de Maya, e diz que “o amor nos torna imortais, quem ama não morre jamais, e se Maya pudesse dar um recado para vocês, diria não desanimem, não desistam, lutem pela dignidade da vida”.
As palavras do padre dizem mais sobre “A Cidade dos Abismos”, filme feito com recursos mínimos, filmado nos primeiros instantes da pandemia e, mais importante, optando num diálogo com o que há de mais forte e indecifrável -aí a magia- sobre o que de melhor o cinema nacional nos deu.
A CIDADE DOS ABISMOS
Avaliação Ótimo
Onde Nos cinemas
Classificação 16 anos
Elenco Verónica Valenttino, Guylain Mukend e Carolina Castanho
Produção Brasil, 2021
Direção Priscyla Bettim e Renato
PAULO SANTOS LIMA / Folhapress