Abrir empresa ajudou 48% das empreendedoras a sair de relações abusivas

O Brasil é o sexto país do mundo com a maior proporção de adultos que não são empreendedores, mas pretendem abrir um negócio nos próximos três anos, segundo o Global Entrepreneurship Monitor (GEM). No caso de algumas mulheres, esse desejo é motivado pela independência financeira que vai permitir a saída de relacionamentos abusivos. Pesquisa anual do Instituto Rede Mulher Empreendedora (IRME) mostra que montar a própria empresa ajudou 48% das empreendedoras a dar um basta na violência doméstica.

 

A relação é complexa e está longe de ser de causa e efeito. Mas, ao empreender, as mulheres tornam-se mais independentes, confiantes e seguras, o sentimento de liberdade aumenta e a autoestima também. Com informação, conhecimento e habilidades socioemocionais desenvolvidas, elas conseguem encontrar caminhos para sair de uma relação abusiva.

 

Ana Claudia Soares da Silva, hoje com 41 anos, tornou-se profissional autônoma em 2006 após um curso de despachante documentalista, em Duque de Caxias (RJ). Na época, ela vivia sob a violência psicológica e patrimonial do ex-companheiro, que conheceu na adolescência e com quem tem um filho. Durante os 15 anos em que viveram juntos, ela relata episódios de manipulação emocional que a fazia ter pensamentos limitantes sobre si.

 

“No início do nosso relacionamento, tudo o que eu queria comprar para o lar, eu falava para ele e ele dizia que não tinha dinheiro. Eu comecei a fazer aquilo que deveria e, no lugar de ajudadora, me tornei provedora e fui crescendo”, ela conta. Porém, a instabilidade familiar e a falta de apoio impediram que Ana Claudia se posicionasse mais firmemente como empreendedora. Então, se revezava entre o negócio próprio, como assessora e consultora em processos administrativos junto ao Detran-RJ,e o trabalho em empresas.

 

Era desgastante lidar com o vício do marido em álcool, as palavras violentas, os gritos, as batidas de portas e janelas. Frases como “você se acha melhor do que os outros” saíam da boca dele e reverberavam o tempo todo na cabeça dela. “Eu não conseguia ser eu.” O marco da violência patrimonial foi quando ela não teve como pagar o IPVA da moto que comprou e, em troca de fazer isso pela mulher, o ex-marido a fez passar o veículo para o nome dele.

 

Quem via a família de fora não imaginava pelo que Ana Claudia estava passando, uma vez que a violência sofrida era impalpável. Diferentemente do que se pensa, violência doméstica não se restringe a agressões físicas; inclui também xingamentos, privação de dinheiro e desvalorização moral. A pesquisa do IRME aponta que 34% das entrevistadas já sofreram agressão e 42% conhecem alguma mulher que empreendeu para sair de uma relação violenta.

 

Violência doméstica nos pequenos detalhes

 

O levantamento, feito em parceria com o Instituto Locomotiva, está na sexta edição e ouviu 2.736 pessoas maiores de 18 anos que empreendem, sendo 313 homens e 2.423 mulheres. Pela primeira vez, havia perguntas sobre violência doméstica, mas o tema vem sendo percebido pela Rede Mulher Empreendedora há pelo menos cinco anos.

 

“A gente começou a ter clareza disso pelos depoimentos delas. Quando o negócio dava certo e elas começavam a ganhar dinheiro, diziam que conseguiam sair de situações de violência. Entendemos que a dependência financeira é um dos principais fatores para elas se manterem nessas situações”, conta Ana Fontes, fundadora e presidente da Rede e do IRME.

 

Discursos sutis indicavam que a violência estava presente. “Muitas vezes, acertando os horários dos nossos eventos, muitas diziam que o marido não gostava que participassem à noite, não aceitava, não gostava que elas estivessem em evidência”, diz Ana, que fomenta o empreendedorismo feminino. Embora 85% das mulheres casadas afirmem que o companheiro é grande incentivador, 32% afirmam que já houve conflitos por causa da dedicação delas ao negócio e 21% relatam que o parceiro já sentiu ciúmes da empresa.

 

Elena Maria Costa, de 48 anos, conta que o primeiro marido sempre a incentivou no trabalho como representante comercial autônoma, que compra produtos diversos, como perfumes, chocolates e sabonetes, direto do fabricante para vender aos revendedores. Mas, quando ela determinou que mudaria de vida porque estava tendo mais sucesso, ele a chamou de “louca”. Faz cinco anos que ele faleceu e a empreendedora casou novamente há três meses, e o novo companheiro seguiu com a violência psicológica e moral.

 

“Ele queria que eu ficasse totalmente fechada. No meu escritório, vem homens buscar os produtos, nunca tive problema com assédio, mas ele achava que teria e dizia que eu erguia minha saia, falava que eu era desonesta. Às vezes, tinha de falar para os clientes que eu não estava em casa por causa dele. A gente deixa porque tem medo, você acaba perdendo a autoestima, minhas filhas falaram que eu tinha perdido meu brilho, e ele se aproveitava disso para me desmotivar mais”, ela relata.

 

Um mês antes de começar esse relacionamento, Elena participou de um curso da Rede Mulher Empreendedora em que se falou sobre os diferentes tipos de violência doméstica e a Lei Maria da Penha. Foi quando ela entendeu que xingamentos eram uma violência. Há uma semana, a empreendedora mandou o companheiro ir embora, e ele aceitou. Agora, ela luta para seguir com o negócio que lhe permitiu ter “a casa mais bonita do bairro”, no interior de São Paulo, viajar de avião, navio e fazer cursos.

 

Para a despachante Ana Claudia, até se reconhecer como vítima de violência doméstica, ela ouviu histórias semelhantes à dela. Fez psicoterapia e ao perceber-se capaz de se manter e ter conquistado a casa própria, pediu o divórcio no fim de 2019. “Depois da pandemia, pude fazer meu trabalho com excelência, aumentei os clientes, fiz progressos, consegui me fortalecer.”

 

Acesso a crédito é dificuldade de empreendedoras

 

Para que os negócios sejam bem-sucedidos e as mulheres possam sair desse ciclo de violência, é preciso ter capital. No entanto, 47% das empreendedoras que solicitaram crédito no último ano tiveram o pedido negado. Além disso, apenas 30% delas sentem-se preparadas para conseguir linhas de crédito e empréstimos.

 

“Há uma série de contextos históricos, sociais, emocionais que fazem elas estarem nessa situação. A gente mostra a percepção das desigualdades, o acesso ao capital e a carga que elas têm de assumir ao cuidar do negócio, da casa e da família”, observa Ana Fontes. “A gente só vai mudar isso profundamente se tivermos políticas públicas junto, de ter crédito facilitado e condições melhores de acesso ao mercado”.

 

Ela pontua que, além de as mulheres não serem bem recebidas quando buscam crédito, a informalidade e o gerenciamento da empresa são outros complicadores. Dois terços delas não separam as contas de pessoa jurídica da pessoa física e metade não tem conta bancária exclusiva para o empreendimento, o que para os bancos é uma barreira na concessão de capital. “Boa parte delas tem negócios de moda, beleza, alimentação, estética, áreas que o sistema financeiro não tem muito apreço, vontade de dar recursos”, diz Ana.

 

Mulheres que impulsionam

 

Apesar das dificuldades que enfrentam, nos negócios e na vida pessoal, as empreendedoras são uma alavanca para outras mulheres. Das que possuem sócios, 44% se aliam apenas ao público feminino, ante 3% dos homens que têm sociedade. Além disso, 73% dos negócios liderados por elas têm mulheres como colaboradoras. No caso das empresas comandadas por homens, elas são maioria em 21% dos casos.

 

“Tem uma questão de liderança das mulheres, que é mais humana, colaborativa e com olhar mais integrado. Quando a gente pergunta por que estão abrindo o negócio, não é só pelo dinheiro, é sempre pelo propósito, para ganhar visibilidade e ajudar outras pessoas. Isso se reflete no tipo de negócio que abrem e em como contratam pessoas”, diz a presidente do IRME. A pesquisa mostra que as principais atividades desenvolvidas por elas são prestação de serviço (39%) e venda de produtos (34%).

 

Para denunciar violência doméstica

 

Se você é vítima ou presenciou algum tipo de agressão, pode procurar os seguintes canais:

 

Polícia Militar: ligue gratuitamente para o número 190 em caso de socorro imediato.

 

Central de Atendimento à Mulher: ligue para o número 180, canal criado pela Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres, que oferece escuta e acolhida às vítimas. As denúncias são anônimas e a chamada é gratuita.

 

Delegacia Especial de Atendimento à Mulher: são postos de atendimento da Polícia Civil especializados nesses casos, onde a mulher pode registrar a ocorrência. Acesse o site do governo do seu Estado para saber onde ficam as unidades.

 

Aplicativo e site de Direitos Humanos: o app Direitos Humanos Brasil recebe denúncias variadas sobre casos que violam os direitos humanos. Já no site da Ouvidoria Nacional de Diretos Humanos é possível ter atendimento por chat e com acessibilidade para a Língua Brasileira de Sinais (Libras). A pessoa também pode receber atendimento pelo Telegram, buscando por “DireitosHumanosBrasil” no campo de busca ou clicando aqui.

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