FOLHAPRESS – Com uma sensibilidade extraordinária e uma capacidade feérica de se reinventar, Antunes Filho foi um dos maiores nomes do teatro brasileiro na segunda metade do século 20 e nas primeiras décadas deste 21.
Nasce aí o perigo quando se decide preparar um documentário sobre ele. Um filme medíocre deixaria evidente o abismo entre o homenageado e aquele que pretende fazer a homenagem.
Diretor que transita entre a ficção, em obras como “A Mãe” e “Antes do Fim”, e a não ficção, com “Elegia de um Crime”, Cristiano Burlan se sai bem do desafio em “Antunes Filho – Do Coração para o Olho”, um dos destaques desta edição do É Tudo Verdade.
Primeiro porque foge do caminho mais óbvio em documentários desse tipo, encadeando depoimentos elogiosos de amigos e especialistas. Burlan apresenta apenas comentários do próprio diretor, o que já é um prato farto, considerando a inteligência e a força expressiva de Antunes.
Esse é um trunfo do documentário, mas não o principal. Burlan expõe a relação de Antunes com o cinema e a televisão, tema pouco abordado, por exemplo, nos obituários do diretor, publicados em maio de 2019. O premiado trabalho no CPT, o Centro de Pesquisa Teatral, do Sesc, fez dele desde os anos 1980 sinônimo das artes cênicas -e não sem razão, sua maior entrega se deu mesmo nos palcos.
Mas suas obras audiovisuais merecem atenção de um público mais abrangente, não só de pesquisadores.
No mais, dada a longeva produção artística de Antunes, que se estende por quase sete décadas, a opção pelo recorte é acertada. Uma visão ampla, que buscasse abarcar Antunes por inteiro, facilmente descambaria na superficialidade, armadilha da qual Burlan soube escapar.
Dessa forma, podemos entender como o cinéfilo Antunes, admirador de Carl Dreyer e de Ingmar Bergman, concebeu “Compasso de Espera”, de 1969, o único longa-metragem dirigido e concluído por ele. Com Zózimo Bulbul no papel de um poeta negro, o filme investiga os meandros do racismo de maneira incomum para a época.
Antunes dirigiu teleteatros para a TV Tupi nos anos 1950, mas o documentário se concentra nas produções desse tipo para a TV Cultura na década de 1970.
“Crime e Castigo”, de Dostoiévski, com Rodrigo Santiago, e “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues, com Lilian Lemmertz e Nathália Timberg, estão entre essas preciosidades, com um pé no expressionismo e outro no melodrama. Merecem ser vistos e celebrados -“Vestido”, por exemplo, está no YouTube numa cópia de qualidade razoável.
“Gosto de trabalhar no limite da realidade e do sonho”, diz Antunes a certa altura do documentário. Os teleteatros representam bem esse meio-fio misterioso do qual ele falava.
É pena que os títulos dos teleteatros não sejam identificados junto às imagens. Os nomes só aparecem nos créditos finais, um obstáculo para o espectador mais curioso. Nada impede (ou deveria impedir) que documentários de caráter mais inventivo, como é o caso, ofereçam informações básicas a quem assiste.
Não se trata, contudo, de um problema que prejudique o filme como um todo.
“Sou um torpedo sempre para frente, para trás não. Não quero virar estátua de sal”, ele fala. O Antunes Filho do cinema e da TV é uma das faces desse “torpedo”, apresentada com beleza por Cristiano Burlan.
ANTUNES FILHO – DO CORAÇÃO PARA O OLHO
Avaliação: Bom
Onde: Em São Paulo: dia 15 (sábado), às 19h, no Sesc 24 de Maio; dia 16 (domingo), às 16h, no Centro Cultural São Paulo – sala Lima Barreto; dia 17 (segunda), às 18h30, no Cine Marquise. No Rio de Janeiro: dia 19 (quarta), às 17h. no Net Botafogo
Preço: gratuito
Classificação: 16 anos
Direção: Cristiano Burlan
NAIEF HADDAD / Folhapress