RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – “Andou Manuel e Rosa/ Pelas veredas do sertão/ Até que um dia, pelo sim pelo não,/ Entrou na vida deles/ Corisco, o diabo de Lampião.” Depois da primeira hora do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, o ator Othon Bastos entra em cena e ultrapassa o realismo no equilíbrio do distanciamento de Bertolt Brecht com as expressões vocais e corporais nordestinas.
Corisco rodopia. Seus olhos abrasados convivem com a dicção diabólica em tom médio. Sob o estouro da bachiana brasileira Nº 5, de Villa-Lobos, seu beijo de barba traz delírio e realidade de couro, mandacaru, chão partido e espingarda. Em 1964, o desempenho de Bastos levava o cinema novo a um ponto elevado de verdade cênica, na aparição mais forte, até ali, do ator moderno em um filme brasileiro.
Integrada à história do cinema, sua atuação virou o emblema de uma cinematografia periférica. “Alguns tipos, como o das medalhas, são dos que mais me impressionaram no cinema”, disse o mestre espanhol Luis Buñuel, em Veneza, numa conversa com o diretor Glauber Rocha registrada pelo crítico Augusto Martínez Torres. As medalhas pendentes no chapéu de Corisco ficaram na memória de Buñuel.
“Geraldo Del Rey, Maurício do Valle e Yoná Magalhães eram totalmente stanislavskianos. De repente, Corisco entra e desestabiliza todo mundo. Por isso chama a atenção”, diz Othon Bastos.
Nascido em 23 de maio de 1933, mas só registrado pelo pai em 1934, em Tucano, no sertão baiano, Bastos faz 90 anos com incertezas. “Hoje, você tem que enfrentar problemas da idade e dificuldades de trabalho. Para a minha idade, é o dobro. As pessoas não se lembram de você, não estão interessadas. É muito difícil a situação para a minha geração. Não há possibilidade de trabalho se você não se produzir”, afirma Bastos.
“O teatro é a chama de tudo. Foi onde comecei. Chego a essa idade e vejo um esfacelamento do teatro. Fico meio triste. Por que o teatro passou para três dias por semana? Como vai sustentar o espetáculo? De terça a domingo você pagava. Antes, tinha nove espetáculos por semana.”
Ainda em Salvador, onde cursou a Escola de Teatro, ele interpretou o repórter de “O Pagador de Promessas” (1962), de Anselmo Duarte, vencedor da Palma de Ouro de Cannes –outro marco da projeção internacional do cinema brasileiro.
Bastos elege “São Bernardo” (1972), de Leon Hirszman, como um desafio superior. “Eu tive que buscar esse personagem (Paulo Honório). Como? Lendo o romance de Graciliano Ramos. O roteiro era o próprio livro. Leon não fez uma adaptação. Fomos fazendo da página tal até a página tal. Eu puxei também do meu avô, que era um coronel. Fui trazendo isso tudo na minha memória.”
Os diretores reconheciam sua capacidade de elevar o nível coletivo de representação em uma cena. Ele foi o Bentinho de “Capitu” (1968), de Paulo César Saraceni, o professor de “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” (1969), de Glauber Rocha, o Homem de “Os Deuses e os Mortos” (1970), de Ruy Guerra, o padre Antonio Vieira de “Sermões” (1989), de Julio Bressane, o caminhoneiro de “Central do Brasil” (1998), de Walter Salles, e o pai de “Bicho de Sete Cabeças” (2000), de Laís Bodanzky. Em 2018, viveu seu último protagonista em um filme de Sérgio Rezende, “O Paciente: O Caso Tancredo Neves”.
“Os cinco grandes filmes para quem quiser saber do meu trabalho -‘Deus e o Diabo’, ‘São Bernardo’, ‘O Dragão’, ‘Os Deuses e os Mortos’ e ‘Sermões'”, lista o ator. Em encontros no café da livraria Argumento, no Leblon, no Rio de Janeiro, ele é capaz de repetir longas falas de seus personagens.
“Othon talvez seja o maior ou melhor ator do cinema brasileiro. Ou um dos melhores atores de todos os tempos. Ele tem uma filmografia sólida, com qualidade e continuidade. Participou de obras extremamente representativas de grandes diretores”, diz o cineasta Ruy Guerra.
“Talvez o meu melhor filme tenha sido feito com Othon, ‘Os Deuses e os Mortos’, pela presença dele. É fora de série. Sempre é um julgamento subjetivo, mas ele é o maior e, se não for o maior, está entre os três maiores atores. Colocou o cinema brasileiro no teto do cinema.”
A atriz Fernanda Montenegro, protagonista de “Central do Brasil”, destaca o dom do colega de ser impregnado por um personagem. “Othon Bastos é um vocacionado absoluto na nossa profissão. Sempre o vi cenicamente integrado, ungido, imantado. Bastos como artista? Absoluto artista, só nos dá orgulho. Sempre que vemos uma interpretação sua, logo concluímos: ah, só ele pode alcançar essa altura, essa integração absoluta. Só ele”, diz Montenegro.
O destaque no cinema e televisão não ofusca seu itinerário no teatro. Nos anos 1950, ele integrou a trupe de Paschoal Carlos Magno, no Rio de Janeiro, e mais tarde rumou para a ebulição cultural de Salvador, tornando-se membro do Teatro dos Novos, no Vila Velha, fundado por um grupo dissidente da escola dirigida por Martim Gonçalves.
Nos anos 1960, no Teatro Oficina, em São Paulo, ele atuou em montagens centrais no teatro brasileiro moderno -“Pequenos Burgueses”, de Gorki, “O Rei da Vela”, de Oswald de Andrade, e duas de Brecht, “Galileu Galilei” e “Na Selva das Cidades”, dirigido por José Celso Martinez Corrêa. Nesse período, chegou a dividir o palco com a atriz Martha Overbeck, sua mulher há 57 anos.
Na Bahia, peças brechtianas inspiradas na literatura de cordel tiveram relevância em sua formação. “Não existe coisa mais brechtiana do que o cordel. Porque você narra, representa, faz. E o cantador é um ator extraordinário de Brecht.”
Glauber Rocha viu alguns desses espetáculos dos Novos e o convidou para o elenco de “Deus e o Diabo”, aprovando mudanças sugeridas pelo ator. “Eu disse para o Glauber: ‘para que fazer esse flashback? Narre esse flashback. Brecht narraria. Bote na terceira pessoa. Assim, você interpreta o fato’. Ele aceitou. Isso que é lindo no Glauber.”
Na cena clássica do beijo, Bastos fez outra observação. “Glauber, aqui não vai ser Clark Gable em ‘…E o Vento Levou’, não. Aqui são duas pessoas selvagens. Vai ser cabelo com cabelo, baba com baba. Corisco não viu Clark Gable”, brincou. “Vá fazendo isso e rodando. A câmera vem em sentido contrário. Quando você sentir que rodou tudo, volta”, avisou Glauber.
A representação de Corisco convenceu Buñuel, Elia Kazan e o mundo, mas não conquistou Dadá, a viúva do cangaceiro, que não quis receber o ator em Salvador. “No filme, ele me traiu. Corisco jamais me trairia”, justificou Dadá.
CLAUDIO LEAL / Folhapress