SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Era 25 de dezembro de 1992. Bárbara Paz, então uma modelo com 17 anos, estava em um Chevrolet branco, voltando de uma festa regada a álcool com duas amigas.
O carro colidiu contra a pilastra de um prédio. Bárbara quase perdeu o maxilar. Seu rosto, fatiado pelo vidro do carro, teve que passar por várias cirurgias.
Sua carreira também ficaria marcada. Atriz e modelo, a face fazia parte de seus instrumentos de trabalho. Foi preciso insistência para se livrar deste estigma.
Ao entrar na exposição “Auto-Acusação”, primeira de Bárbara Paz, que começa neste sábado na Galeria Fonte, em São Paulo, é o som de vidro caindo sobre vidro que dá as boas-vindas ao visitante. Uma videoarte da artista, que também é diretora premiada, mostra em preto e branco uma cascata de cacos de garrafas estilhaçadas.
“O pó de vidro foi o que me cortou. Convivi com ele durante dez anos. Saía da minha pele”, afirma. “É uma coisa que eu queria fazer. Era uma necessidade. Precisava falar não só sobre as minhas marcas, mas sobre as cicatrizes de todo ser humano.”
Bárbara já havia retratado em um livro e um filme a vida de seu marido, o cineasta argentino Héctor Babenco, morto em 2016, mas nunca tinha se voltado à sua própria trajetória. Não se considerava pronta. Agora, olha para sua história por meio das artes plásticas.
O nome da mostra vem da peça homônima do dramaturgo austríaco Peter Handke. “A gente está sempre auto-acusando, neste mundo de hoje, que é movido por eus. Será que eu deveria estar aqui? Será que eu deveria expor?'”, afirma a artista.
Em certo momento, enquanto caminha pela mostra, Bárbara aponta para um conjunto de fotos que retratam o rosto de uma jovem em vários ângulos. Do olho esquerdo dela, desce em curva uma linha, que atravessa sua boca até quase se encontrar com sua orelha direita.
A artista conseguiu as imagens com o médico que a operou logo após o acidente. Desde então, tinha perdido o contato com ele. Conseguiu encontrá-lo agora, três décadas depois, e pediu por registros de raio-x, fichas médicas ou o que mais ele pudesse ter guardado.
O médico afirmou que o hospital queimava os arquivos a cada 20 anos, conta a artista, mas que tinha guardado fotos que ele próprio tirara logo após a remoção dos 434 pontos que foram necessários para curar o rosto dela.
Bárbara relembra com emoção a reação que teve quando o médico mostrou as fotos. “Primeiro me emocionei. Pensei: ‘Nossa, eu conheci essa menina! Essa menina sou eu. Ela mora em mim! Ela não existe mais, mas as marcas existem.”
Superado o choque inicial, achou as imagens belas. “Podia ser Nan Goldin fazendo isso”, afirma, entre risos. As marcas do rosto, diz a atriz, correspondem às marcas internas. “Quando você se reconstrói fisicamente, não tem como não ficar reconstruído por dentro também. É como um vaso quebrado.”
Há outras referências ao acidente espalhadas pelo espaço expositivo. Além do vidro, a agulha de sutura, que também perfurou seu rosto, aparece em várias peças. Em um vídeo, mãos marcam o corpo da artista com régua e caneta. Em outra série, ataduras cobrem toda sua cabeça.
Também estão presentes alguns dos elementos que a salvaram. O cabelo, que usava para esconder as cicatrizes, se enrosca por todo seu corpo em retratos. Em outro clique, litros de maquiagem são derramados sobre sua cabeça. Em bolsas de soro, lê-se “CicAtriz”, em alusão à atuação, que ajudou o sangue a seguir correndo em suas veias.
AUTO-ACUSAÇÃO
Quando: Qui. a sáb., das 14h às 20h. Até 17/6
Onde: Galeria Fonte – r. Morato Coelho, 751, São Paulo
Preço: Gratuito
DIOGO BACHEGA / Folhapress