Observar o comportamento humano em tempo de pandemia é uma atividade bem interessante, além de inédita para quem tem menos de 102 anos, eis que a última oportunidade ocorreu em 1918, com a gripe espanhola. Ficar em casa se escondendo da COVID 19, com algum tempo disponível, é um prato cheio para quem aprecia as ciências humanas. Jornais, telejornais, sites de notícias, Instagram, Facebook, Twitter e grupos de WhatsApp representam farto material de estudo.
O cenário, como já dito, é o Brasil e o mundo em tempo de contágio relâmpago e milhares de mortes. Os atores: políticos, economistas, empresários, médicos, comunicadores, articulistas, religiosos, fanáticos de toda a ordem, dentre outras categorias.
Os políticos nunca tiveram tantos palanques, e agora com o direito de bancar o cientista, prescrever medicamentos, praticar racismo contra os chineses, mandar abrir e mandar fechar, mandar prender e mandar soltar. Nunca uma campanha presidencial começou tão prematuramente no País, a ponto de governadores e prefeitos se arvorarem em restringir direitos fundamentais, garantidos pela Constituição Federal, e do presidente demitir o ministro que no momento contava com maior credibilidade perante a população.
Os economistas fazem projeções sombrias sobre o futuro do País, calculando os prejuízos para o a economia. Alguns defendendo que e economia é mais importante do que a vida, porque a fome de muitos (inevitável para eles) mata mais do que a peste. Outros, de corrente humanista, sustentando que o reaquecimento dos negócios pode esperar ou acontecer gradativamente. Há, até, correntes macabras inovadoras, apontando que a morte de muitos idosos pode ajudar a diminuir o déficit da previdência.
Os empresários grandes e pequenos, banqueiros e informais também se dividem. Os fatores da divisão, em regra, são os tamanhos do caixa de cada um, o seu apetite capitalista e sua formação humanística. É mesmo provável que a dificuldade acometa a maioria. Alguns mais e outros menos, mas em meio a essa situação de guerra sempre tem os espertinhos, majorando, injustificadamente, preços de produtos essenciais, e até falsificando álcool gel, que esteve em falta no mercado. Tem empresário graúdo, que jogou muita grana na campanha do Presidente, suspendendo contrato de milhares de empregados, mas também tem banqueiro doando dinheiro para o combate à pandemia. Aliás, o que se espera mesmo dos banqueiros e congêneres nesse momento é compaixão para com o grande montante de inadimplentes, pós crise. Que sejam moderados nos juros e que não façam do parcelamento do cartão de crédito a pá de cal para falidos e desempregados.
Os médicos apresentam um espetáculo incrível de teses dissonantes, a parecer treinadores de futebol, cada qual com uma escalação e uma estratégia de jogo. Entram em campo a cloroquina e a hidroxicloroquina. Saem de campo terapias milagrosas, como a que vinha sendo aplicada na minha Ribeirão Preto por uma médica (médica de verdade, inscrita no CRM e estabelecida) e receitas caseiras. Medicamentos com ou sem evidências científicas de eficácia desfilando todos os dias pelos jornais. Até “Annita” (não é a cantora, mas o vermífugo humano) pode ser lançado como o remédio derradeiro pelo ministro astronauta. Previsões do número de mortos que poderiam dar espaço ao chamado “bolão”. Que loucura.
Comunicadores e articulistas compondo e vendendo as mais diversas teses. Os românticos e os que se filiam ao time da autoajuda sustentando que seremos pessoas melhores ao depois da pandemia; que o momento é ideal para os casais se reencontrarem e que o amor vencerá. Eu adoraria que isso acontecesse mesmo, mas só tenho visto o mundo piorar após sucessivas tragédias dos séculos XX e XXI (a própria gripe espanhola, duas guerras mundiais, o 11 de setembro de 2001 e outras tantas). Só vejo crescer o capitalismo selvagem, o egoísmo, a intolerância e o distanciamento entre os povos, apesar da globalização. Quanto aos casais, é triste constatar que no período de quarentena aumentaram consideravelmente os casos de violência doméstica. Por outro lado, comunicadores que derramam sangue em seus programas também se travestiram de cientistas e estrategistas. Um desses malucos chegou a sugerir que se criasse um campo de concentração para recolhimento dos idosos. Meu Deus.
Os religiosos se dividem entre os mais cautelosos, que querem manter o seu rebanho, e nesse momento aconselham aos fiéis que fiquem em casa, e os mais agressivos, em cujos templos, segundo eles, se pode encontrar a blindagem para o vírus, mediante o pagamento do dízimo, que não fará falta a ninguém, eis que a comida brotará na mesa de cada família contribuinte. Mas, de qualquer modo, se algum desconfiado decidir ficar em casa, apelam para que não deixe de contribuir para a causa da igreja, por via de TED ou de DOC. Em comum, os religiosos acreditam que obterão o perdão de Deus. Talvez, muitos deles nem acreditem em Deus.
Os cultuadores do fanatismo, em moda no Brasil, deitam e rolam nas redes sociais. As chamadas “fake news” ocupam a grande maioria das postagens. Buscam desesperadamente um culpado pela pandemia. Seria a sede de poder da China, o fraquejamento dos líderes mundiais ou a vingança divina pelas maldades que o homem vem fazendo ao planeta. Muitos, na linha do astrólogo/filósofo Olavo de Carvalho, negam a existência da doença. Há teses para todos os gostos. As redes sociais nesses tempos poderiam ser fonte de inspiração para uma grande comédia, nos moldes daquelas concebidas por Molière, na França do século XVII e, ao mesmo tempo, para uma tragédia, comparável aos bons espetáculos da Grécia Antiga.
Acredito que as observações a que se referem este texto valem por si mesmas, pois nos ajudam a compreender um pouco mais o ser humano, em sua lucidez ou em sua loucura, com sua coragem ou seus medos, ignorantes ou dotados de algum conhecimento. Não devem levar, necessariamente, a conclusões, mas quem sabe ao aprimoramento do senso crítico. Nada impede, entretanto, que se de palpites. Eu diria que a pandemia não vai tornar ninguém melhor ou pior. Talvez modifique alguns hábitos, como o cumprimento efusivo entre as pessoas e o descaso para com a higienização das mãos, mas os bons continuarão a ser bons e os egoístas continuarão a buscar vantagem em tudo.
É possível que infectados que se salvaram e pessoas que perderam entes queridos repensem alguns valores, mas não virarão santos. O processo de humanização das pessoas não se restringe ao enfrentamento de uma epidemia. É muito mais complexo. Por fim, o que pode mudar, e isso é positivo, é que as nações gastem menos com armas e invistam mais em ciência voltada à defesa da saúde, sem necessitar do concurso de laboratórios farmacêuticos (que se alimentam da doença), pois o aprendizado que fica é o de que o inimigo pode ser invisível, infenso a mísseis, ataques aéreos e artilharia pesada.