RECIFE, PE (FOLHAPRESS) – Vinte anos depois, as mortes de duas adolescentes no litoral de Pernambuco seguem impunes. Conhecido como Caso Serrambi, o assassinato de Tarsila Gusmão e Maria Eduarda Dourado, jovens de classe média com 16 anos de idade, chocou a sociedade pernambucana.
As duas garotas foram passar os dias de descanso na casa de amigos em Serrambi, em Ipojuca, um dos principais destinos turísticos de Pernambuco, em 2003, em meio ao feriadão do Dia do Trabalhador. Elas foram vistas com vida pela última vez no dia 3 de maio daquele ano.
Cinco investigações distintas das polícias Civil e Federal apontaram os motoristas de transporte alternativo Marcelo e Valfrido Lira, irmãos, como os responsáveis pelos crimes. Em setembro de 2010, o júri popular de Ipojuca decidiu, por 4 votos a 3, pela absolvição dos réus. A defesa deles nega envolvimento.
“Cinco delegados distintos e duas forças policiais chegaram à mesma conclusão. Se houvesse alguma coisa diferente em 20 anos ou naquele momento, alguém teria dito alguma coisa. Não apareceu nenhuma versão diferente”, afirma o delegado José Silvestre, primeiro a atuar no caso, da Polícia Civil.
Os apontamentos das polícias tiveram concordância do Ministério Público de Pernambuco ao final do processo.
Tarsila Gusmão e Maria Eduarda Dourado estiveram em Serrambi no dia 3 de maio de 2003, um sábado. Junto com amigos, saíram de lancha para um passeio rumo à praia de Maracaípe. O grupo desceu no Pontal de Maracaípe e definiu um horário para retorno. As duas jovens foram caminhar.
Ao voltarem ao ponto de encontro, Tarsila e Maria Eduarda teriam percebido que os amigos já tinham voltado com a lancha para Serrambi. No percurso na faixa de areia, foram fotografadas a imagem auxiliou a polícia nas investigações.
As duas garotas seguiram pela areia a pé em direção a Porto de Galinhas, de onde ligaram de um orelhão para o dono da casa de Serrambi, Tiago Alencar Carneiro da Silva. Elas pediram que ele fosse buscá-las de carro.
Mesmo assim, elas teriam decidido pedir caronas até Serrambi. Algumas pessoas presentes no local disseram à polícia terem visto a garota entrando numa kombi no início da noite.
A partir dessa noite, as duas desapareceram. No dia seguinte, amigos relataram os sumiços aos pais de Tarsila e Maria Eduarda.
Os corpos delas foram encontrados dias depois em um canavial próximo ao distrito de Camela, em Ipojuca, por um amigo do pai de Tarsila. O comerciante José Vieira de Melo resolveu partir em busca do paradeiro da filha e da amiga dela na região.
A investigação da polícia apontou que as meninas foram violentadas sexualmente e que havia marcas de tiros nos corpos.
Uma testemunha disse à polícia que viu as garotas entrando numa kombi de parachoque verde. A mulher, chamada de Regivânia, também descreveu as características de um dos motoristas, que seria Valfrido Lira. O outro irmão, Marcelo, também estaria na kombi no momento, segundo a polícia.
“Regivânia foi ouvida várias vezes e submetida à reconstituição do crime no mesmo horário em que as meninas entraram na kombi. Ela consegue dizer a olho e a ouvido sobre a kombi com riqueza de detalhes. É uma pessoa pobre, moradora de lá, quis testemunhar, mesmo com risco”, diz o delegado Paulo Jeann, um dos responsáveis pela investigação.
A polícia diz que encontrou fios de nylon, papel de bombom e lâmina de barbear no local do crime semelhantes aos encontrados na kombi de Marcelo. Fios de cabelo foram achados na kombi e submetidos à perícia, quando ficou constatado que eram compatíveis com o cabelo das meninas.
Os óculos de sol usados por Tarsila foram encontrados, segundo o Ministério Público, com um dos kombeiros.
A polícia também afirma que a kombi foi levada por Marcelo para Cachoeirinha, a 188 km de Ipojuca, para mudar a pintura, após os corpos serem encontrados.
O primeiro promotor do caso, Miguel Sales, que ficou na investigação por quase cinco anos, devolveu o inquérito para as polícias ao menos quatro vezes nesse período, solicitando novas diligências. Uma das alegações dele à época foi que os policiais que atuaram inicialmente não isolaram o local, deixando pessoas comuns e carros circularem pela área.
No início de 2008, dois novos promotores foram escalados para atuar junto com Sales. A decisão foi de denunciar os kombeiros. Miguel Sales se afastou do caso por divergir da tese.
Em setembro de 2010, o júri popular decidiu por 4 votos a 3, pela absolvição dos réus. Após o julgamento, familiares e amigos dos kombeiros ergueram o ex-promotor do caso Miguel Sales nos braços na área externa do fórum.
Atualmente, Valfrido Lira está preso por uso de documento falso em outro processo. Já Marcelo Lira está livre.
O advogado Jorge Wellington, responsável pela defesa dos acusados, reafirma o entendimento pela inocência. “Foram inquéritos [policiais] que buscaram dizer o que o outro estava dizendo. Não existem provas que apontem eles como autores desses crimes horrendos. E não existem porque não foram eles. Eles nunca viram nem as meninas. Jamais tiveram contato com elas.”
O defensor classificou o depoimento da testemunha que relatou ter visto as meninas entrando no veículo como frágil. “Ela disse que reconheceu Valfrido como sendo o cobrador, só que, na distância em que ela se encontrava e com o horário já escurecendo, a perícia atestou que ela não tinha condições cientificamente dela reconhecer ninguém.”
O advogado também refutou as provas alegadas pela polícia sobre objetos encontrados na kombi. “Como um papel de bombom deixado por alguém no local do crime dez dias depois está no mesmo local? Lá não venta e não chove?”, questiona.
Jorge Wellington também disse que foi indicado pelo promotor Miguel Sales, após deixar o caso, para atuar para os dois kombeiros. “[Achei] Corretíssimo [ele indicar], porque ele acreditava na inocência. Ele não era mais promotor, estava em busca de justiça.”
A Promotoria entrou com um recurso para anular o júri, mas o Tribunal de Justiça de Pernambuco manteve a decisão em 2015. Três anos depois, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) também não acatou o recurso, dando fim ao caso na esfera judicial.
A reportagem procurou o pai de Tarsila, mas ele não quis falar sobre o assunto. O pai de Maria Eduarda já faleceu, e a reportagem não conseguiu contato com a mãe dela.
O promotor Salomão Ismail Filho diz que Miguel Sales se envolveu pessoalmente na investigação. “Foi 4 a 3 numa comarca que não tinha a isenção necessária para fazer o julgamento”, diz. Em razão de escutas telefônicas que a polícia fez, pegou-se uma ligação de Miguel para o defensor público que na época defendia os kombeiros. A partir daí, perdemos a confiança em atuar com ele.”
Miguel Sales faleceu em novembro de 2014, aos 67 anos. A reportagem não conseguiu contato com familiares do promotor.
JOSÉ MATHEUS SANTOS / Folhapress