SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Nelson Rodrigues não enxergava bem nem era um especialista em bola ao cesto. Mas seus olhos míopes eram certeiros em identificar o óbvio e ficaram arregalados com a festa que tomou conta do Rio de Janeiro há 60 anos.
Com uma vitória por 85 a 81 sobre os Estados Unidos, no ginásio Maracanãzinho, em 25 de maio de 1963, o Brasil se tornou bicampeão mundial. O time verde-amarelo de Wlamir repetiu o que o time verde-amarelo de Garrincha tinha feito no ano anterior, no Chile, na Copa do Mundo de futebol. E o Rio ficou ébrio.
“Triste é a alegria que não dá um único e escasso pau d’água. No bi do futebol, que vimos nós? Uma embriaguez unânime, seja da pura felicidade, seja da violenta cachaça. A cada passo, via-se um brasileiro com a cara civicamente entornada na sarjeta. Pois bem. E, anteontem, o basquete nos deu os seus primeiros bêbados”, publicou Nelson, em sua coluna na edição de O Globo de 27 de maio.
Segundo o hiperbólico cronista, “no Maracanãzinho, o que houve foi inconcebível”. “O impacto do triunfo mudou fisicamente os torcedores. Sujeitos de caras facinorosas ficaram lindos”, afirmou, antes de observar efeito semelhante nas mulheres.
“Os buchos sumiram, e repito: ninguém mais era bucho. A meu lado, estava uma santa senhora, de canelas finas e espectrais e uma cara. Deus me perdoe, de bruxa de disco infantil. Pois na penúltima cesta do Brasil, ela já me parecia uma Ava Gardner.”
Descontado todo o exagero do genial escritor, a festa foi realmente notável há 60 anos, ainda que concentrada no Rio de Janeiro. Em uma época na qual ainda era uma adolescente a NBA, a liga norte-americana de basquete, o Brasil estava entre as grandes forças do basquetebol e já havia sido campeão mundial em 1959, no Chile -beneficiado, é verdade, pela desclassificação da União Soviética.
“Naquela época, os grandes títulos eram divididos entre três países. Às vezes, ganhavam os Estados Unidos. Às vezes, dava Brasil. Às vezes, dava União Soviética”, disse, à Folha, Wlamir Marques, 85, principal candidato a maior nome da história do basquete brasileiro.
Ele recordou que a preparação para a sequência de competições que culminou no bi mundial durou cinco meses, algo hoje inconcebível. “A seleção adquiriu uma personalidade com excesso de treino! O nosso treinador, o Kanela, era muito exigente. Fomos para ganhar, jogamos para ser campeões. Tínhamos condição para isso.”
Tinham mesmo. O Brasil registrou um aproveitamento de 100% no Mundial e foi conquistando os cariocas jogo a jogo. Na penúltima rodada do heptagonal final, com o então recorde de renda no Maracanãzinho, o duelo com a União Soviética teve ares de final.
Kanela mostrou que seu rigor não era só com os próprios atletas e infernizou a arbitragem, espezinhando especialmente o uruguaio Julio Sánchez Padilla, que o expulsou. Amaury e Wlamir tiveram ótimas atuações. E o time da casa fez 90 a 79.
Ainda faltava um passo, no entanto, para aquele time. Que tinha Ubiratan e Rosa Branca no garrafão. Tinha Sucar e Mosquito. E tinha o apoio de uma cidade louca para se embriagar.
“Aquilo foi um negócio que foi crescendo. No primeiro jogo, não tinha tanta gente. Mas a gente foi ganhando, fomos campeões invictos. No jogo final, tinha gente pendurada em todos os cantos do Maracanãzinho, e nem é o Maracanãzinho de hoje, cabia muito mais gente. Teve invasão no fim. É uma lembrança muito boa”, afirmou Wlamir.
Os Estados Unidos já não tinham chances de título naquela jornada. Mas haviam atropelado o Brasil nos Jogos Pan-Americanos, dias antes, em São Paulo. E contavam com Willis Reed, que, em 1996, seria eleito entre os 50 melhores jogadores dos 50 primeiros anos da NBA e, em 2021, entre os 75 melhores dos primeiros 75 anos da liga.
Se os donos da casa (com cinco vitórias em cinco jogos) ganhassem naquele sábado, seriam campeões. Se perdessem, jogariam no domingo uma partida de desempate contra o vencedor do duelo entre União Soviética e Iugoslávia (então com quatro vitórias e uma derrota cada um).
“Perdemos de 22 pontos para os Estados Unidos no Pan-Americano. Era uma equipe excepcional. Mas a gente sabia que poderia ganhar. E aquele incentivo da torcida, o ambiente… Ter aquilo a favor aumenta muito o desempenho. Você se sente estimulado por aquele povo todo ao seu lado”, vibrou Wlamir.
Passados 60 anos, o basquete não tem no Brasil o apelo que teve naquelas semanas de 1963. No Mundial que se apresenta -será realizado entre 25 de agosto e 10 de setembro, nas Filipinas, na Indonésia e no Japão-, a seleção, em momento de renovação, busca uma campanha longeva, que, se possível, renda vaga nos Jogos Olímpicos de 2024, em Paris.
O grupo comandado por Gustavo de Conti tem jovens de talento, como o armador Yago, 24. Mas o Brasil não é uma potência, não será campeão do mundo e não causará embriaguez coletiva, como há seis décadas.
“Eu não gosto do que estou vendo”, resumiu Wlamir. “Estamos querendo jogar basquetebol imitando os Estados Unidos. Virou uma competição de bolas de três pontos. O que a gente vê no Brasil é uma pelada. O que se vê nas Américas, na Venezuela, em Porto Rico, é que todos jogam à americana. Chega e chuta [arremessa].”
Nem existia a linha de três pontos em 1963. O relógio de posse de bola tinha limite de 30 segundos, seis a mais do que o atual. Mas o Brasil de Wlamir, o Diabo Loiro, por mais que ele despreze a modernidade, jogava um jogo hoje tido como moderno, de velocidade, que sufocava os rivais e tinha arremessos de fora do garrafão.
Esse jogo encantou o Rio. Conquistou o mundo. E fez o míope Nelson Rodrigues -feliz com uma vitória que não conseguia analisar taticamente- atribuir o resultado não a um homem específico, como adorava fazer no futebol, mas ao ser humano brasileiro, como figura coletiva. Promovido, o que não é honra diminuta, a “personagem da semana” na coluna do gênio.
“Assim é a vida. Os idiotas da objetividade consideram todos os fatôres e só esquecem um detalhe: o homem! Afinal de contas, quem dá tapinhas, apanha rebotes, salta e encesta é o ser humano. Vimos no Maracanã a luta entre o homem brasileiro e o mundo. O que se tornou evidente é que o nosso tinha um outro ímpeto, um outro sortilégio, uma outra luminosidade”, observou Nelson.
“Pergunto: quem deve ser o meu personagem da semana? Penso em vários: Amauri, Vlamir, Vitor, Kanela, Mosquito, Sucar, Ubiratan, Jatir e êsse que tem o nome casto, nupcial de Rosa Branca. Mas, hoje, o meu personagem da semana será o homem geral do Brasil.”
MARCOS GUEDES / Folhapress