Um ambiente parecido com o da quase inacessível Ilha da Queimada Grande, na costa de Itanhaém, litoral sul de São Paulo, está sendo construído no coração da capital para garantir a preservação do habitante insular mais famoso: a temida jararaca-ilhoa. A cobra, que em todo planeta só ocorre nos 43 hectares da ilhota, é vítima da biopirataria e está seriamente ameaçada de extinção. Por isso, um plantel de salvaguarda é mantido no Instituto Butantan, em São Paulo. O novo centro de conservação irá replicar as condições naturais de clima e topografia da ilha para facilitar a reintrodução da espécie em seu habitat, se for preciso.
De acordo com o pesquisador Otávio Marques, que há quase três décadas pesquisa a cobra, estudos indicaram que sua população na ilha diminuiu 50% em um período de doze anos.
Estima-se que hoje existam pouco mais de dois mil exemplares. Se a redução continuar, a jararaca-ilhoa pode desaparecer, o que justifica os esforços para reprodução em cativeiro visando posterior repovoamento. “Há dez anos, a gente conseguiu coletar e trazer para cá 20 espécimes para esse trabalho de reprodução, que está sendo bem sucedido. Hoje já são 50 jararacas-ilhoas”, disse.
Marques acha importante que esses animais sejam preparados para eventual reintrodução em seu habitat, por isso precisam viver em ambiente similar ao da ilha. Atualmente, eles são mantidos em laboratório, em caixas próprias. “Será um espaço simulando a Queimada Grande, com árvores, rochas e temperatura controlada. No inverno, por exemplo, vamos usar aquecedores, pois o de lá é menos rigoroso do que o daqui (capital).”
De acordo com a pesquisadora Selma Maria de Almeida Santos, diretora técnica do Laboratório de Ecologia e Evolução do Butantan, o plano é abrir o espaço à visitação do público para difundir conhecimentos sobre a cobra. Em seu habitat, elas não podem ser observadas pela população em geral, pois o acesso à ilha é restrito a pesquisadores. “O novo centro de conservação das serpentes insulares, que está em obras, terá serpentários abertos, contendo árvores da Mata Atlântica – algumas inclusive já estão no terreno – e passarelas de vidro para que os visitantes possam ver a jararaca-ilhoa nas árvores”, detalhou.
A alimentação das cobras também vai mudar. Ela conta que, atualmente, as ilhoas são alimentadas com sapinhos, quando filhotes, e com pequenos roedores à medida que crescem. “Como os ambientes serão telados, para evitar os ataques de gaviões as cobras, vamos colocar pássaros para que elas aprendam a se alimentar das aves, como acontece na ilha.” A expectativa é de que a nova estrutura – apenas o serpentário das ilhoas terá cerca de 400 m2 – fique pronta ainda este ano. Os ambientes serão interligados com passarelas de vidro para que os visitantes possam observar as cobras.
LIVRO DOS 100 ANOS
Na luta pela sua preservação, a jararaca-ilhoa virou protagonista de um livro, lançado por Marques no final do ano passado para marcar os 100 anos de descrição da serpente brasileira. Ela foi descrita como uma nova espécie (Bothrops insularis) em 1921 pelo diretor do Butantan à época, Afrânio do Amaral, por ser diferente da jararaca do continente (Bothrops jararaca). Na ausência de pequenos mamíferos como ratos, principal presa da jararaca continental, a ilhoa desenvolveu habilidades para se alimentar das aves migratórias que têm a ilha em sua rota de migração.
Isolada há 11 mil anos na Queimada Grande, distante 33 km da costa de Itanhaém e conhecida popularmente como “ilha das cobras” devido à quantidade do réptil, a jararaca sofreu mudanças para se adaptar ao ambiente insular, como a cor dourada – a continental é marrom escura – e a habilidade para predar pássaros, subindo em árvores. O livro “A Ilha das Cobras: biologia, evolução e conservação da jararaca-ilhoa na Queimada Grande” foi produzido com apoio da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que também financia projetos de conservação da serpente.
Marques relata, por exemplo, que a migração de aves como a guaracava-de-crista-branca (Elaenia chilensis), em março, e do sabiá-una (Turdus flavipes), entre junho e outubro, passaram a ser essenciais para a alimentação das jararacas-ilhoas. Conforme o pesquisador, as aves residentes da ilha aprenderam, ao longo de milênios de convivência, a se livrar dos ataques das cobras. Para se alimentar, a jararaca-ilhoa passou a depender dos pássaros migratórios, menos treinados para se defenderem dos botes.
A descoberta remete para a importância de preservação das matas no litoral. “O sabiá-una se desloca do alto para baixo da Serra do Mar em busca do fruto do palmito (palmeira juçara). No período de disponibilidade desse alimento na baixada litorânea, existe abundância de sabiás e alguns migram para a ilha. Se ocorrer a redução do número de palmitos em áreas adjacentes, isso pode impactar diretamente a jararaca-ilhoa”, observou.
REDUÇÃO DRÁSTICA
Um estudo realizado pela equipe do cientista, com apoio da Fapesp, constatou que, entre 1990 e 2002, a população de jararacas-ilhoas na Queimada Grande ficou 50% menor. “A redução pode ter causa natural, mas temos fortes suspeitas de que esteja associada ao tráfico de espécimes da ilha, inclusive por pessoas que alegam serem pesquisadores para conseguir acesso ao local”, disse Marques. A ilhota, com 1,5 km de extensão e largura de até 500 m, faz parte da Área de Proteção Ambiental do Litoral Centro e o acesso precisa ser autorizado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Um novo censo das cobras será realizado este ano pelo Butantan e ICMBio. As informações serão repassadas à União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês), que já colocou a jararaca-ilhoa na lista vermelha dos animais “criticamente em perigo”. Marques foi um dos primeiros a observar a redução populacional nas incursões que faz à ilha para pesquisas desde 1995. “Ao andar pelo terreno, a gente percebia que o número de cobras estava menor do que antes, até que em 2002 fizemos uma contagem populacional comparando com as planilhas anteriores e notamos uma redução que pode chegar à metade”, disse.
Para o cientista, é provável que as serpentes venham sendo retiradas ilegalmente de seu habitat por traficantes de animais. “Ouvi relatos disso mais de uma vez. Em certa ocasião, pescadores disseram terem visto um pessoal do Butantan colocando as cobras em caixas de isopor. Mas nós não usamos caixas de isopor e em hipótese alguma tiramos cobras da ilha.”
Ele contou que uma aluna sua de doutorado foi abordada em São Vicente (SP), antes de embarcar para a ilha, e recebeu proposta de R$ 20 mil por cobra. “Além das queimadas feitas por pescadores para afugentar as jararacas, a gente também encontra lixo e materiais, indicando que pessoas estiveram coletando cobras na ilha.”
A biopirataria também pode ter interesses econômicos. Estudos preliminares desenvolvidos no Butantan demonstraram que uma molécula presente no veneno da serpente da ilha pode inibir a progressão de células tumorais. Outra linha de pesquisa investiga propriedades anestésicas. O pesquisador lembra que, da peçonha da jararaca continental, foi desenvolvido o medicamento captopril, largamente empregado no controle da hipertensão, rendendo fortunas à indústria que o produz.
Segundo ele, a grande luta do Butantan é evitar que o local continue sendo predado. “Lá atrás propusemos a transformação em um parque nacional como Fernando de Noronha, com turismo controlado. A ilha é isolada e fica difícil manter uma sede administrativa, mas as operadoras de turismo ajudariam na preservação. O entorno todo é ideal para contemplação e turismo subaquático, pois tem naufrágios e corais. Na época houve um lobby de operadores que promovem pesca submarina na região e o plano não avançou.”
COBRA ‘FAKE’
Para envolver a comunidade na preservação, o pesquisador coordena um projeto de educação ambiental com os moradores de Itanhaém, cidade do continente mais próxima da ilha. Com sua equipe, ele organizou visitas às escolas do município para falar sobre a jararaca-ilhoa. Agora, Marques vai conduzir um experimento científico com a participação dos estudantes para construir réplicas das duas jararacas com massa de modelar e espalhá-las em áreas verdes no entorno da escola e, também, na ilha.
Ao ser atacada por predadores, especialmente as aves de rapina, a cobra “fake” ficará com marcas de bicos e garras. Como a espécie insular, de cor amarela dourada e hábitos diurnos, é mais visível que a continental, que se movimenta mais à noite, a ideia é comparar a taxa de ataques a cada espécie e onde eles mais acontecem, o que pode ajudar na conservação da jararaca-ilhoa.
O livro, com ilustrações em cores, aborda vários aspectos da evolução, ecologia e história natural da jararaca-ilhoa, narrando a saga da cobra desde sua origem, no período glacial, quando a ilha se separou do continente. Com informações científicas, mostra como vive, se alimenta e se reproduz esse réptil único. Aborda também os estudos sobre a biologia da cobra e os esforços dos pesquisadores para salvar a espécie.
BUTANTAN
Cobras estão no centro da história do instituto paulista Quando assumiu o cargo de primeiro diretor do recém-criado Instituto Butantan, em 1901, o médico sanitarista Vital Brazil já era conhecido como o “médico das cobras”. Na época, ele buscava um antídoto para os muitos acidentes causados pelas picadas de serpentes e incentivava a apreensão desses animais para que fossem estudados.
Assim, contrariando pesquisas internacionais, ele descobriu que as picadas de cobras não podiam ser tratadas com um único soro, pois cada espécie tinha um veneno específico.
Para ter cobras suficientes para a produção dos soros antiofídicos, ele desenvolveu uma caixa de madeira barata e segura para que os fazendeiros pudessem capturar as cobras e despachar por ferrovia para o Butantan.
Em 1914 foi inaugurado o serpentário, uma das atrações do instituto. Atualmente, ele abriga mais de mil serpentes e todas as espécies são objeto de estudos.
Entre as cobras insulares, além da jararaca-ilhoa, os pesquisadores estudam a jaraca-de-alcatraz, espécie exclusiva da Ilha dos Alcatrazes, na costa de São Sebastião, além de jararacas nativas da Ilha da Moela, no Guarujá, também no litoral paulista.
Agência Estado