Câmara aprova projeto que limita demarcação de terras indígenas

Indígenas protestam contra aprovação do marco temporal| Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados

A Câmara dos Deputados aprovou nesta terça-feira (30) o texto-base do projeto de lei do marco temporal, em mais uma vitória da bancada ruralista ante a agenda ambiental do governo do presidente Lula (PT).

O texto-base do projeto foi aprovado por 283 a 155, sob críticas da Frente Parlamentar Indígena e em meio a protestos de lideranças dos povos em Brasília e de outras cidades. O governo orientou contra a aprovação do texto, “respeitando a pluralidade”. O PSB, partido da base de Lula, liberou sua bancada. Os deputados ainda precisam votar destaques ao texto, que, depois, segue para o Senado.

O projeto foi eleito como prioridade da FPA (Frente Parlamentar da Agropecuária) nas últimas semanas, após a vitória no relatório da medida provisória dos ministérios -que desidratou as pastas de Marina Silva (Meio Ambiente) e Sonia Guajajara (Povos Indígenas).

A tese do marco, defendida pela FPA, determina que as terras indígenas devem se restringir à área ocupada pelos povos na data da promulgação da Constituição Federal de 1988.

Os indígenas refutam a ideia e argumentam que, pela Constituição, têm direito a seus territórios originais, não limitados por uma determinada data.

Na segunda-feira (29) e nesta terça a Frente Parlamentar Indígena tentou convencer o relator do texto, Arthur Maia (União Brasil-BA) a fazer alterações, em especial em dois artigos: um que define a política de contato a povos isolados e outro que diz que a demarcação pode ser revista em caso de “alteração dos traços culturais” da comunidade.

Maia, no entanto, não acatou essas mudanças propostas e manteve o projeto como estava no seu relatório.

O texto avançou na Câmara como uma estratégia do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para se antecipar ao julgamento do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre este tema. A corte marcou para 7 de junho o julgamento sobre o tema, e a tendência é que a tese seja refutada.

Antes da votação, o relator Arthur Maia afirmou que a discussão serve como sinalização à corte. “Espero que o Supremo tenha a sensibilidade de [ver] que o processo está andando aqui na Casa, e andando aqui na Casa, não tem sentido o Supremo cumprir um papel que é da Câmara”, afirmou Maia.

O presidente da FPA, Pedro Lupion (PP-PR), disse que “o Congresso foi omisso por muito tempo”, o que abriu brecha para que o tema passasse a ser deliberado pelo STF.

“[O acordo] não andou, a maioria expressa sua vontade de acordo com o texto que reza e garante o que o STF decidiu lá atrás, na demarcação da Raposa Serra do Sol”, afirmou Lira antes da votação.

Na reunião de líderes, o presidente da Câmara disse que retiraria o marco da pauta caso o STF desmarcasse o julgamento da próxima semana. Integrantes do próprio Ministério dos Povos Indígenas conversaram com o ministro Alexandre Padilha (Secretaria de Relações Institucionais) dizendo que não interessa à pasta que o STF retire o caso da pauta. Por isso, pediram cautela à articulação política.

Integrantes do governo Lula (PT) tentaram adiar a votação, embora admitissem a dificuldade de a articulação prosperar. A urgência da proposta foi aprovada na semana passada por 324 votos contra 131, de 257 necessários.

“[Sobre o] Marco temporal, estamos trabalhando para não ir para a pauta. Se for, vamos encaminhar o voto não”, afirmou o líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE).

Nos bastidores, também havia o receio de as negociações atrapalharem a votação da medida provisória que muda a Esplanada dos Ministérios, prioritária para o Palácio do Planalto.

A proposta alternativa do governo é a criação de um grupo entre o Palácio do Planalto, Congresso e Supremo. Líderes da bancada ruralista acreditam que essa ideia poderá funcionar para que haja um consenso e fim da disputa. Apesar disso, eles rejeitaram a sugestão de que a votação do projeto do marco temporal fosse adiada até a discussão do grupo dos três Poderes.

Dentro do governo, porém, a ideia de se criar um grupo com o Congresso e STF não é unanimidade. Integrantes do governo dizem que o Ministério dos Povos Indígenas procurou a Secretaria de Relações Institucionais para tentar convencer o Planalto de recuar do plano de criação do grupo de três Poderes.

Na visão de membros dos Povos Indígenas, a principal aposta para garantir a derrubada da tese ruralista é a votação no Supremo.

O QUE DIZ O PROJETO

O texto aprovado pela Câmara, que ainda pode ser alterado, diz que “é nula a demarcação que não atenda aos preceitos estabelecidos nesta lei”.

O trecho vem sendo criticado por indígenas por abrir espaço para que áreas já homologadas sejam anuladas, o que pode causar a expulsão de povos de seus territórios e aumenta o risco de conflito.

O texto também possibilita a indenização ao antigo proprietário de terras demarcadas, algo que hoje não acontece, veda a ampliação de territórios já delimitados e diz que mesmo os processos em andamento devem se adequar ao marco -ou seja, devem passar a considerar a área ocupada em 1988.

A proposta ainda abre uma brecha para que terras demarcadas sejam retomadas pela União, “em razão da alteração dos traços culturais da comunidade ou por outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo”.

O texto do marco temporal, originalmente, não tratava da tese, mas sim transferia para o Poder Legislativo a prerrogativa de demarcação dos territórios.

A ele foram apensadas (juntadas) propostas que incluem, além do marco, a possibilidade de realização de empreendimentos e exploração de recursos naturais das terras. A versão atual, que ainda pode ser alterada, cria um capítulo sobre “uso e gestão das terras indígenas”.

Segundo críticos da proposta apontam que o trecho abre brecha para empreendimentos como estradas e linhas de energia ou hidrelétricas em terras indígenas.

A proposta permite ainda que esses empreendimentos sejam “implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou ao órgão indigenista federal competente”. E prevê que, para atividades econômicas, “inclusive agrossilvipastoris”, será “admitida a cooperação e contratação de terceiros não indígenas”.

Segundo o entendimento da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), o projeto “também autoriza qualquer pessoa a questionar procedimentos demarcatórios em todas as fases do processo (inclusive os territórios já homologados), flexibiliza a política indigenista do não contato com os povos indígenas em situação de isolamento voluntário e reformula conceitos constitucionais da política indigenista”.

Já o ISA (Instituto Socioambiental) diz que a proposta é “uma das mais graves ameaças aos povos indígenas do Brasil” e “poderá inviabilizar demarcações de terras indígenas”.

EXPECTATIVA DE VOTAÇÃO PROVOCOU PROTESTOS

A expectativa da votação gerou protestos de indígenas e entidades. Em São Paulo, a Tropa de Choque da Polícia Militar usou bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha para dispersar uma manifestação de indígenas guaranis que desde as 5h30 bloqueavam as cinco faixas da rodovia dos Bandeirantes.

O grupo de cerca de cem pessoas fazia vigília desde a noite de segunda (29) na Terra Indígena Jaraguá, na zona norte da capital paulista, e desceram da aldeia principal com faixas contra a PL 490 e material inflamável, interditando a via com pneus em chamas.

De acordo com o coronel da PM Carlos Forner, a atuação do Choque foi necessária porque as negociações não avançaram. “Depois de três horas de negociação, não conseguimos evoluir. A ação da polícia foi um sucesso”, afirmou.

A líder indígena Ara Poty, do Jaraguá, criticou o uso de gás lacrimogêneo contra os manifestantes, o que fez ao menos duas crianças passarem mal. Ela endereçou as críticas ao governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos).

“Você [Tarcísio] é um anti-indígena. Mandou seu povo [PMs] nos expulsar de uma manifestação pacífica. A tua polícia estava armada até os dentes”, disse a líder indígena.

Na Câmara dos Deputados, em Brasília, Célia Xakriabá (PSOL-MG) e a ministra Sonia Guajajara (Povos Indígenas) uniram parlamentares para protestar contra o marco temporal.

Durante uma coletiva de imprensa com elas, o coordenador executivo da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), Kleber Karipuna criticou a ação da polícia contra a manifestação.

“[Foi uma] ação truculenta do governo Tarcísio, mostrando para o que ele foi eleito”, afirmou.

A reportagem entrou em contato com a gestão Tarcísio na manhã desta terça para pedir posicionamento sobre a atuação da polícia e aguarda resposta. Mais cedo, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) afirmou, em nota, que estavam sendo empregados “todos os meios necessários para manter a segurança da população, a fluidez do trânsito e o direito à livre manifestação”.

ENTENDA O PROJETO DO MARCO TEMPORAL

**A tese**

O marco temporal determina que a demarcação dos territórios indígenas deve respeitar a área ocupada pelos povos na promulgação da Constituição Federal, em outubro de 1988.

**A crítica**

Os movimentos indígenas discordam da tese e afirmam que, em 1988, seus territórios já haviam sido alvos de séculos de violência e destruição de aldeias; portanto, entendem que as terras que são de direito dos povos não devem ser balizadas por uma data.

**Os ruralistas**

Defendem a tese sob argumento de que dará mais segurança jurídica ao agronegócio.

**O STF**

O Supremo pautou para 7 de junho a retomada do julgamento que vai decidir se a tese é válida ou não. Até agora, o ministro e relator Edson Fachin votou contra o marco. O ministro Kassio Nunes Marques, a favor.

**O projeto de lei**

Paralelamente, tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei que institui o marco temporal. O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), tenta aprovar o texto antes do julgamento do STF.

Indígenas criticam aprovação do marco temporal na Câmara

Lideranças indígenas brasileiras demonstraram muita preocupação com a aprovação do projeto de lei do marco temporal, o PL 490, votado e aprovado na noite desta terça-feira (30) na Câmara dos Deputados, em Brasília.

Dario Kopenawa Yanomami, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, afirma que os povos indígenas estão em uma situação muito complicada com a aprovação, que abre a possibilidade para um “massacre”.

“É uma situação muito grave. É uma irresponsabilidade do Congresso. A gente acompanhou em Brasília com quase 300 povos indígenas, mas não conseguimos participar. Para os povos indígenas, esse PL 490 é morte. Vai derramar muito sangue dos povos indígenas, vai ser um massacre, um genocídio, com violações dos direitos do povos indígenas, e vai fragilizar muito os territórios que já foram demarcados. Essa aprovação dos deputados representa genocídio. É um projeto inconstitucional”, desabafa o líder yanomami.

“Nossa esperança no contexto jurídico, como Constituição, legislação, é que o Supremo Tribunal Federal veja se o PL é legal ou não. Isso é responsabilidade do STF, porque é inconstitucional.”

A deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG), destacou que o PL 490 acaba com a esperança dos indígenas no futuro. “Um genocídio legislado. O terno deles não será eterno e enterram hoje esperança de futuro. Aprovado o PL 490, que retira territórios e arranca direitos dos povos indígenas. Seguimos em luta no Senado, onde já houve compromisso de debate e não da urgência de passar a boiada”, falou a deputada no Twitter.

Outra que se pronunciou pelas redes sociais foi Joenia Wapichana, presidenta da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), que afirmou que a Constituição foi “atropelada” pelos deputados.

“É inaceitável ver a Constituição Federal ser atropelada. Neste momento, os direitos dos povos indígenas estão em jogo no plenário da Câmara dos Deputados com a votação do PL 490/2007. O projeto é um RETROCESSO em nossa política socioambiental, indigenista e uma tentativa de RETIRAR DIREITOS dos povos indígenas do Brasil!

O ISA (Instituto Socioambiental) divulgou um comunicado criticando a aprovação do PL 490 e enfatizando este ser inconstitucional.

“Em linhas gerais, o texto aprovado afronta a Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), poderá inviabilizar demarcações de terras indígenas e configura uma das mais graves ameaças aos povos indígenas do Brasil na atualidade. Defende-se a retirada de pauta do PL ou, alternativamente, a sua integral rejeição”, diz a nota, destacando que o PL configura “inconteste retrocesso social”

JOÃO GABRIEL, THIAGO RESENDE, JULIA CHAIB E VICTORIA AZEVEDO / Folhapress

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