O cerrado perdeu 782 km² de vegetação em abril deste ano. No acumulado desde janeiro, o número vai a 2.206 km², área aproximada de Palmas, capital do Tocantins, segundo dados divulgados nesta sexta (12) pelo Deter. A alta de desmatamento na savana mais biodiversa do mundo já havia sido apontada nos dados parciais do sistema do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) usado para a fiscalização em tempo real.
Na Amazônia, houve uma queda em relação a abril do ano passado, com 329 km² derrubados na floresta. O número segue como a terceira marca mais baixa de alertas para o mês desde o início da série histórica em 2015.
Especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que o cerrado sofre com terras públicas sem destinação, têm menos áreas conservadas do que a Amazônia e pode ser afetado por regulações da União Europeia que se concentram na floresta tropical.
Ainda, a interação do cerrado com a Amazônia tem papel fundamental no regime de chuvas e abastecimento de corpos hídricos do país. As reservas legais no bioma variam entre 20% e 32%, quase inversas às da Amazônia, com 80% protegidos por lei nas propriedades rurais.
Os próximos meses serão um desafio para o combate à derrubada, facilitada pelo tempo seco e pela falta de chuvas –não à toa, estão nesse período os picos da série histórica do Deter, iniciada em 2019 no cerrado.
O sistema mapeia e emite alertas de desmate para orientar ações do Ibama e outros órgãos de fiscalização. Os resultados representam uma indicação, mas não são o dado fechado do desmatamento, que é publicado pelo Prodes (Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite), também do Inpe, duas vezes por ano.
O principal alerta do Deter, para especialistas, é o de urgência na região, que deve ser analisada em conjunto com o bioma vizinho. “Há uma ênfase histórica, e justificada, na Amazônia, mas há uma ligação bastante grande entre o que acontece na floresta e no cerrado”, diz Paulo Moutinho, pesquisador sênior do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia).
Um deles é regulatório. “O cerrado só tem 7% de sua área protegida legalmente. Na Amazônia, o conjunto de unidades de conservação, reservas extrativistas e terras indígenas, entre outros, chega a 50%.”
“Ainda, não há destinação para 2,5 milhões de hectares de terras públicas, que vêm sendo griladas numa velocidade bastante grande”, destaca Moutinho.
Segundo dados do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, as autuações por desmatamento cresceram 287% de janeiro a abril deste ano, em comparação com o mesmo período do ano passado. O aumento no cerrado, somado a outros biomas, foi de 169%.
O governo prevê começar em julho a atualização do Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento no Cerrado. Seu par para a Amazônia, o chamado PPCDAm está em fase de análise das contribuições recebidas em consulta pública.
Yuri Salmona, diretor-executivo do Instituto Cerrados, chama a atenção para outro fator que impulsiona o desmate do cerrado: a própria legislação internacional, como a aprovada pelo parlamento europeu, leva a uma migração do desmatamento na região.
Isso ocorre porque há restrições para a compra de produtos originados em áreas desmatadas ou que não sigam regras de controle da cadeia produtiva. O cerrado, no entanto, ficou de fora da legislação da União Europeia. E o fenômeno não é exclusivo do Brasil.
“Há outras savanas no mundo que sofrem com isso de blocos como a União Europeia”, explica.
Para Salmona, o ideal seria que o desmatamento no cerrado não passasse de um teto, e que se pudesse equilibrar a produção agropecuária com a preservação da vegetação.
“Temos mais de 30 milhões de hectares de pastagens subutilizadas, às vezes com uma cabeça de gado por hectare. Para que desmatar se continuamos com manejo ruim e baixa tecnologia?”, diz.
A região de intensa atividade agropecuária conhecida como Matopiba (nome formado pelas siglas de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) liderou a expansão do desmatamento no cerrado em 2022, e já mostra efeitos na produção.
“A retirada do cerrado, combinada a um efeito de mudança climática global, já causou uma perda de 30% da produtividade da soja, porque o ótimo climático foi deslocado geograficamente”, diz Moutinho.
O ótimo climático é a faixa de temperatura favorável à soja, que varia entre 20°C e 30°C, com a temperatura ideal em torno dos 25°C.
Outro problema é a redução da vazão de rios do cerrado. Estudo do Instituto Cerrados, em parceria com o Instituto Sociedade, População e Natureza, aponta que 88% de 81 bacias hidrográficas do bioma já tiveram redução de vazão causada pelo desmatamento entre 1985 e 2022.
A projeção indica que o cerrado pode perder 34% da vazão nas suas bacias nos próximos 28 anos. Em 2050, essa redução deve chegar a 23,6 mil metros cúbicos de água por segundo, o equivalente a oito vezes o volume de água que corre pelo rio Nilo.
O desmatamento, segundo a pesquisa, é o principal fator responsável por essa redução. “Esse modelo de ocupação do cerrado para commodities agropecuárias, exportação e latifúndio depende da exploração excessiva de recursos, é como se fosse um tiro no pé. A própria agricultura acaba com a agricultura”, diz Salmona.
Ainda, diz o pesquisador, diversos rios que alimentam bacias na Amazônia nascem na região do cerrado, como o Tocantins e o Xingu. Essa água, junto com a evapotranspiração da floresta, ajuda a formar os rios voadores, corredores de umidade que levarão chuva a outros locais do país. Além disso, o cerrado guarda 8 das 12 maiores bacias do país.
“Do ponto de vista hidrológico e de outros, é preciso falar no binômio cerrado-Amazônia. São como pernas de um corpo”, resume.
O projeto Planeta em Transe é apoiado pela Open Society Foundations.
LUCAS LACERDA / Folhapress