TOULOUSE, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Há mais de 30 anos, o coronel da reserva da Polícia Militar Walmir Corrêa Leite, 57, diz sentir o mesmo mal-estar quando é apontado como assassino ou como herói por ter integrado a ação policial que marcou a história dos direitos humanos no Brasil e ficou conhecida como massacre do Carandiru.
“Essas pessoas não estão na minha pele. E não querem saber que, atrás da farda, tem outro ser humano”, diz. “Mas o que me causa mais estranheza é que aceitem versões simplistas da história, como aquela que diz que nós entramos já atirando, e também a ideia de que bandido bom é bandido morto.”
Em 2 de outubro de 1992, uma suposta rebelião de presos no Complexo Penitenciário do Carandiru, em São Paulo, e a consequente invasão do pavilhão 9 por tropas da Polícia Militar resultaram na morte de 111 detentos.
Mais de 20 anos depois, 74 dos cerca de 350 policiais que participaram da ação foram condenados pelo Tribunal do Júri a penas que variam de 48 a 624 anos de prisão. Desde então eles aguardam em liberdade pelo desfecho jurídico do caso, cujo último recurso é o julgamento da constitucionalidade do indulto concedido pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL). A questão está em análise no STF (Supremo Tribunal Federal).
Na primeira entrevista já concedida por um policial condenado pelo caso, Corrêa Leite questiona o método utilizado para denunciar policiais pelas mortes: a autodeclaração de disparo das armas. O problema, diz, é que a medida, tomada como base para a acusação do Ministério Público, foi uma orientação dos comandos da PM feita exclusivamente para os agentes das primeiras tropas a ingressarem no pavilhão e que teria poupado outros agentes que também atuaram no presídio.
Em seu depoimento à época, o coronel admitiu ter feito “4 ou 5” disparos durante a operação. “Por ter sido honesto, acabei produzindo uma prova contra mim e hoje estou pagando também pelo que outros policiais e autoridades fizeram.”
Corrêa Leite também critica a falta de perícia das armas dos policiais e das balas, que poderia individualizar as condutas dos participantes da ação. Além disso, o coronel se diz indignado com o fato de nenhuma autoridade pública ou comandante ter sido responsabilizado pela ordem.
Para ele, é difícil falar em injustiças cometidas contra os policiais ao longo do processo que o condenou por causa do resultado trágico da operação. “Injustiça é essas pessoas estarem sob a responsabilidade do Estado para cumprir uma pena e serem devolvidos mortas para as famílias.” Ainda assim, ele classifica o processo como “uma aberração jurídica”.
Formado em direito, Corrêa Leite avalia que uma saída para o caso seria por meio da chamada Justiça Restaurativa. Trata-se do processo voluntário que reúne ofensores, ofendidos e integrantes da comunidade afetada para uma roda de escuta mútua e responsabilização, mediada por facilitadores para a construção conjunta de uma solução para o conflito. Isso significaria reunir policiais, sobreviventes, familiares de vítimas e representantes de instituições do Estado.
“Eu acredito que tenha uma parte dessa história que nunca foi ouvida, porque é conveniente que ela se cale”, afirma.
Naquele 2 de outubro, o então tenente Corrêa Leite estava em um treinamento de salvamento em altura com sua tropa do COE (Comando de Operações Especiais), numa pedreira na Grande São Paulo, quando recebeu a ordem de interromper a programação e ir para o Carandiru.
“O que mais me impressionou na chegada foi o fogo, a fumaça e a gritaria”, afirma. “Aquele presídio deveria ter cerca 2.000 presos e tinha quase 8.000, numa superação absurda da sua capacidade.”
Ele diz que, como tenente, não tinha acesso à tomada de decisão sobre a entrada da PM no Carandiru. “Decidiram e determinaram: vocês vão entrar. É a mesma coisa que você falar: vai com a camisa do Palmeiras no meio da torcida do Corinthians. Ou seja, era sabido que isso não acabaria bem”, afirma.
Ele relata a presença de representantes do governo, de órgãos do Judiciário e da administração do presídio naquele dia. “Todos foram retirados do contexto na acusação, sendo que eles estavam implicados na situação”, aponta.
Segundo ele, pouco antes da entrada da polícia chegou até a área externa da Casa de Detenção a informação de que haveria presos mortos no pavilhão 9. E essas mortes teriam entrado na conta dos 111.
Depoimentos da época dos primeiros policiais a ingressarem no pavilhão descrevem a existência de corpos na entrada e nas primeiras escadarias. Relatos de sobreviventes, no entanto, negam assassinatos cometidos por presos e apontam que o número de mortos no caso poderia ser, na verdade, maior que os 111.
No best-seller “Estação Carandiru”, Drauzio Varella descreve as brigas entre grupos rivais da zona norte e da zona sul da cidade que teriam deflagrado a confusão em 1992. “Os funcionários de plantão contam que nessa hora [de início da confusão] ocorreu a primeira baixa no grupo da zona norte e que a esta se seguiram outras de ambos os lados, em retaliação. Mais tarde, a PM afirmou ter encontrado mortos ao invadir o pavilhão. Na versão dos presos, ninguém morreu no acerto de contas”, registrou o médico que trabalhava como voluntário na Casa de Detenção.
O pavilhão 9 tinha à época cerca de 2.500 detentos, muitos deles presos provisórios, ainda sem condenação. Corrêa Leite conta que teve de posicionar sua tropa de 13 homens na entrada sem que tenha havido planejamento da operação pelos comandos ou mesmo a análise do mapa do pavilhão para orientar a ação.
“Mas daí a dizerem que entramos atirando, que entramos para matar…” O coronel interrompe a frase num engasgo, mas segue, com a voz embargada. “Naquele dia, eu acordei de manhã com o mesmo espírito com que eu acordei nos outros 30 anos… O espírito de servir e de proteger”, completa.
Depois do Carandiru, no entanto, ele não quis mais atuar na PM e foi para o Corpo de Bombeiros. “Eu precisava demonstrar que eu não era aquilo, um assassino, como tantas vezes me chamaram. Os bombeiros me resgataram e me restituíram a possibilidade de ser humano.”
Não foi só ele. Da tropa de 13 homens do COE que Corrêa Leite comandou naquele dia, seis pediram demissão depois de 1992.
O perfil dos policiais que participaram da invasão do presídio é diverso. Os primeiros a entrar no pavilhão 9 eram do COE, do Gate e da Rota (Rondas Ostensivas Tobias Aguiar). Recobrado o controle, entraram outros policiais de batalhões de Choque para uma varredura enquanto as primeiras tropas deixavam o local.
Informações até 2012 sobre Inquéritos Policiais Militares (IPM) e denúncias à Ouvidoria e à Corregedoria dos 120 réus no processo foram reunidas pelas pesquisadoras Maíra Machado e Marta Machado no livro “Carandiru: não é coisa do passado”. Alguns PMs têm uma única anotação –justamente a do Carandiru–, enquanto outros concentram dezenas de ocorrências, desde faltas administrativas até mortes e envolvimento em atividades criminosas.
“Seria hipócrita se eu não admitisse que houve excessos ou mesmo execuções. Os laudos mostram isso”, reconhece o coronel. Exames evidenciam sinais de execução das vítimas: 77 mortos tinham tiros na cabeça, seis receberam tiros à queima-roupa. “Mas só posso falar por mim e pela minha tropa, e não houve abuso da nossa parte”, afirma.
Procurada, a Polícia Militar do Estado de São Paulo informou, por nota, que não comenta decisões da Justiça e que “não foram localizados registros” da afirmação de que teria havido orientação dos comandos para autodeclaração de disparos apenas das primeiras tropas.
As autodeclarações foram tomadas como base para a acusação do Ministério Público. Como a cena do crime foi alterada, e não se sabe onde cada corpo foi encontrado, os investigadores também atribuíram cada morte à cela de origem do detento. Assim, os mortos que ocupavam as celas de cada pavimento foram designados à tropa que teria atuado majoritariamente naquele mesmo andar.
Em nota, a Promotoria informou que “as acusações estão fundamentadas em provas periciais, documentais e orais e foram acolhidas por júris distintos” e que sua pertinência “foi confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça”.
Corrêa Leite diz saber que as mortes no Carandiru não devem ficar impunes, e avalia que as indenizações às famílias e sobreviventes são importantes, mas limitadas. “A sociedade não pode deixar de ter uma resposta para esse caso. Mas atribuir toda a culpa apenas a certos policiais da ponta, sem implicações para o Estado, não me parece ser essa resposta.”
**AUTORIDADES DO CASO CARANDIRU**
Luiz Antônio Fleury Filho (1949-2022), governador de SP, não se tornou réu. Foi testemunha de defesa dos policiais, quando declarou que a entrada da PM no presídio era necessária e se eximiu de responsabilidade, afirmando não ter dado a ordem. Foi deputado federal depois que saiu do governo
Pedro Franco de Campos, secretário da Segurança Pública: deixou o cargo dias depois da operação no Carandiru, mas negou ter participado da decisão. Não se tornou réu e foi testemunha de defesa dos policiais. Tornou-se depois procurador de Justiça e professor universitário
José Ismael Pedrosa (1935-2005), diretor do presídio: não se tornou réu. Afastado do cargo, tornou-se diretor da Casa de Custódia de Taubaté. Considerado inimigo do PCC, facção que surgiu no rescaldo da chacina no Carandiru, Pedrosa teve a filha sequestrada em 2001 e foi morto a tiros em outubro de 2005. Três integrantes da facção foram condenados pelo assassinato
Ubiratan Guimarães (1943-2006), comandante da operação: Tornou-se deputado estadual numa campanha que usou o número 111. Foi condenado em 2001 a 632 anos de prisão pela chacina no Carandiru, mas acabou absolvido pelo TJ-SP em 2006, mesmo ano em que foi assassinado em seu apartamento, em São Paulo
FERNANDA MENA / Folhapress