‘Desinformação ajuda a criar falsas memórias’

Banco de Imagens

À medida que os aparelhos eletrônicos ocupam mais espaço em nossas vidas, crescem as preocupações sobre os efeitos que a tecnologia pode causar na saúde mental das pessoas. Um dos questionamentos envolve a memória: os recursos digitais seriam capazes de alterar de maneira significativa a forma como nos lembramos das coisas?

Para Daniel Schacter, professor de psicologia da Universidade Harvard e um dos maiores estudiosos do tema na atualidade, a tecnologia pode nos distrair, mas é exagero dizer que ela está deteriorando nossas lembranças. “A tecnologia pode ser útil para a nossa memória, como as agendas digitais que nos notificam sobre compromissos”, afirma.

Ele alerta, porém, que há perigos circulando pela internet, como a desinformação, que pode ser incorporada à memória das pessoas.

Schacter escreveu em 2001 o livro The Seven Sins of Memory: How the Mind Forgets and Remembers (Os sete pecados da memória: como a mente esquece e lembra, na tradução livre do inglês) e, no ano passado, lançou uma versão atualizada com novas informações, incluindo debates recentes sobre os efeitos da tecnologia na mente humana.

Ele falou com exclusividade ao jornal O Estado de S. Paulo. Confira trechos da entrevista:

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Como o sr. relaciona seus estudos com o avanço tecnológico?
Nos anos 1990, estudamos em meu laboratório o processo de revisão de fotografias pela memória. É algo que se tornou mais relevante hoje em dia porque as pessoas frequentemente fotografam e publicam fotos em redes sociais, podendo revê-las a qualquer momento. Quando você sai de férias e posta fotos no Instagram, por exemplo, sem dúvida você terá lembranças mais realçadas dessas ocasiões específicas e lembrará menos de momentos das férias que não foram fotografados. Mais recentemente, também fizemos uma pesquisa que discute como o ato de fotografar afeta a memória. Ao tirar fotos de um evento, é possível que você fique com lembranças mais vagas sobre aquela ocasião – uma das explicações plausíveis é a de que o fotógrafo presta atenção em aspectos como luminosidade e ângulos, e menos no evento em si. Por outro lado, há indícios de que fotografar também pode impulsionar sua memória sobre algum evento, caso a imagem capture algo importante sobre o momento.

A tecnologia está danificando nossa memória?
Esse trabalho sobre fotografias sugere que a tecnologia pode trazer efeitos negativos e positivos, mas ainda são indícios. Outro exemplo que trago no livro é sobre o GPS. Há evidências de que, ao usar o GPS para uma rota, o usuário terá menos memória sobre aquele trajeto, já que ele não estaria pensando ativamente em como se locomover daquele lugar para outro. Porém, ainda não se sabe os efeitos do uso recorrente dessa tecnologia, ou seja, como o GPS afetaria de forma generalizada a habilidade de relembrar caminhos. Antes de termos preocupações exageradas, precisamos lembrar que a tecnologia pode ser útil para a nossa memória, como as agendas digitais, que nos notificam sobre compromissos, por exemplo.

Em um dos estudos, o sr. trata sobre falsas memórias. Como a desinformação se encaixa nisso?
Existem razões para acreditar que notícias falsas que circulam pela internet podem ser incorporadas à memória, causando efeitos negativos como a criação de memórias falsas. Uma pesquisa interessante publicada há alguns anos discutiu isso, analisando a memória de eleitores em um referendo sobre a liberação do aborto na Irlanda, em 2018 – um dos resultados do estudo foi que as pessoas eram mais suscetíveis a formar falsas memórias em relação às fake news que se alinhavam com sua própria ideologia.

 

Quais são os aspectos do smartphone que mais afetam a nossa memória?
Muitas coisas em um smartphone, como troca de mensagens e redes sociais, têm o potencial de afetar nossa memória. Já sabemos que o uso “multitarefa” (fazer várias coisas ao mesmo tempo) é um dos problemas mais graves. Como professor, olho para os meus alunos e muitos deles estão com dispositivos eletrônicos, talvez sem prestar atenção ao que eu estou falando. Isso causa distrações e afeta como a pessoa armazena informações.

Como o Google, especificamente, poderia afetar a memória das pessoas?
Um estudo de 2011, que foi bastante divulgado, chegou a indicar que o Google muda a forma como o nosso cérebro armazena informações, porque esquecemos das coisas que temos certeza de que podemos encontrar em uma rápida pesquisa no buscador. Desde então, é uma discussão que paira no ar. Mas, de novo, acredito que os efeitos não estão claros, porque as pesquisas da última década ainda são inconsistentes.

 

Na pandemia, mergulhamos completamente em aparelhos digitais. Como isso pode afetar nossa memória? Nossas lembranças de uma chamada pelo Zoom são as mesmas que teríamos de uma conversa realizada pessoalmente?
Não acho que a pandemia tenha afetado a nossa habilidade de armazenar informações, mas é possível que as pessoas tenham memórias mais turvas de coisas que aconteceram nesse período. Estar em diferentes contextos e configurações nos ajuda a segmentar experiências para lembrar delas posteriormente. Ao ficar muito tempo em casa, em chamadas de vídeo, é como se todas as experiências estivessem em um mesmo pacote dentro da memória, o que faz com que seja mais difícil lembrar das coisas. Mas isso não diz respeito à tecnologia em si, e sim ao fato de viver uma existência repetitiva.

Há como evitar que a tecnologia nos distraia?
O ideal é usar a tecnologia quando você precisa e quando ela não vai interferir em outra atividade. Voltando ao exemplo da sala de aula, seria mais adequado focar naquele momento e perceber que as outras coisas paralelas podem esperar sua hora.

Existe, então, um jeito saudável de usar tecnologia?
Com certeza. A tecnologia pode ser aliada da memória, e há grandes exemplos disso. Nas últimas décadas, cresceu nos EUA o fenômeno trágico de pais esquecerem os filhos no banco de trás dos carros, provavelmente porque estavam distraídos pensando em várias outras coisas. Com a tecnologia, já existem hoje inovações que ajudam a avisar que a criança está no carro. Um dispositivo chamado eClip, por exemplo, que é instalado no assento do bebê, monitora a temperatura do veículo e envia um alerta ao smartphone dos responsáveis em caso de esquecimento. Isso pode prevenir uma tragédia.

A tecnologia está sempre evoluindo, e já vemos discussões sobre fusões do mundo real com o virtual, como o metaverso. Quais são os possíveis efeitos psicológicos disso?
Ainda não consigo dizer como isso afetaria nossa memória, mas parece ter o potencial de causar certas confusões mentais entre o que acontece no ambiente real e no ambiente digital. Poderia causar o que eu chamo de “erro de atribuição”: aspectos do mundo da fantasia poderiam ser trazidos para a realidade, e vice-versa. Se eu fosse estudar sobre esse tema, teria interesse em pesquisar esses efeitos especificamente.

 

Agência Estado

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