SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A Terra Indígena Vale do Javari, na fronteira do Brasil com Colômbia e Peru, abriga a maior concentração de indígenas isolados do mundo e também guarda vestígios dos assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, em 5 de junho do ano passado.
É a tentativa de preencher lacunas dessa história que Sônia Bridi conta no documentário “Vale dos Isolados: O Assassinato de Bruno e Dom”, que estreia na plataforma Globoplay à 0h desta sexta-feira (2).
A produção é a primeira dirigida por ela, com direção de fotografia de Paulo Zero e roteiro de Cristine Kist. O filme é parte de “O Projeto Bruno e Dom – Uma Investigação sobre a Pilhagem da Amazônia”, que reúne 16 veículos e organizações jornalísticas de dez países, entre eles, a Folha. A iniciativa é capitaneada pela Forbidden Stories, entidade dedicada a dar continuidade ao trabalho de jornalistas assassinados no exercício do ofício.
As primeiras cenas mostram amigos de Bruno, indígenas e não indígenas, da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), de volta à cena do crime, em busca de pertences da dupla.
Os achados, em memórias de celulares, incluem algumas das últimas imagens registradas pelo indigenista e pelo repórter antes da morte. Esses arquivos, inéditos para o público em geral, foram descobertos pela Polícia Federal a partir do material entregue pelos voluntários nas buscas.
Foram cem dias de produção do filme, entre as três viagens de Bridi e da equipe. Da base, uma pousada em Atalaia do Norte (AM), a equipe se deslocou a sete aldeias diferentes, como as dos povos marubo, korubo e kanamari.
“É uma sensação estranha. A gente passa pelo lugar em que foram emboscados e mortos, a comunidade onde moravam os assassinos e a base da Funai”, descreve a jornalista.
O isolamento no vale é geográfico, de comunicação -falta de sinal de telefone e internet, um desafio para a produção do filme- e, ainda, voluntário, no caso de povos indígenas isolados.
Esse modo de vida também está em jogo no Congresso. O documentário estreia em meio ao projeto de lei 490, aprovado na Câmara na terça (30). Além de tentar estabelecer um marco temporal para demarcações de terras indígenas, ele flexibiliza o contato com povos isolados quando houver interesse nacional.
“A que direito serve entrar em uma terra ocupada por indígenas, a quem serve? Para os indígenas, sabemos que não”, afirma Sônia.
O trabalho com povos isolados foi uma das ocupações de Bruno, que pediu licença não remunerada da Funai em 2019 e passou a trabalhar na Univaja. A ida para a organização foi uma alternativa às pressões da Funai liderada por Marcelo Xavier, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).
Xavier, há duas semanas, foi indiciado pela Polícia Federal por homicídio com dolo eventual no caso Bruno e Dom. A PF afirma que ele tinha conhecimento dos riscos que viviam as pessoas que atuavam no Javari, mas não agiu diante dessas ameaças.
A mudança profissional de Bruno foi tomada após uma operação contra o garimpo no Javari, em setembro de 2019, que culminou na demissão de um servidor de um cargo de coordenação.
Já para Dom Phillips, o Vale do Javari era objeto de pesquisa para um livro. Parte dos blocos de notas do repórter foi achada na lama pelas equipes de busca, assim como sua carteira profissional. Essa imagem, diz Sônia, condensa a violência e a premeditação do crime.
“Você, jornalista, vê aquela carteira de jornalista do Dom tirada debaixo da camada de folha e lamas… É tão gráfica a morte deles que todos ficaram em silêncio”, conta.
No filme, a perseguição sofrida por Bruno no Javari é destacada por Beto Marubo, uma das lideranças da Univaja e amigo do indigenista.
Um dos grandes problemas na região é a pesca ilegal, também usada para lavar dinheiro do tráfico de drogas. Uma balsa na fronteira do Brasil com o Peru é o local de operação de Colômbia, apontado como mandante das mortes de Bruno e Dom e também do indigenista Maxciel Pereira dos Santos, em 2019.
“Deixamos para ir lá no dia em que já íamos voar de Tabatinga para o sul, porque não queríamos dar chance de saberem onde a gente estava e irem atrás”, explica Sônia.
Colômbia, preso, é representado pelos mesmos advogados dos mandantes do assassinato de Dorothy Stang, em Anapu (PA), em 2005, o que indica, para a jornalista, a necessidade de investigar que interesses estão relacionados nesses casos.
No filme, é mostrada ainda a casa de um ribeirinho, Raimundo da Costa, um entreposto conhecido e local onde Bruno e Dom se hospedaram.
O lugar também é cenário de um episódio-chave contado no documentário com imagens recém-descobertas: o pescador Amarildo da Costa Oliveira, conhecido como Pelado e sobrinho de Raimundo, passou pela casa do tio por duas vezes, de barco, para provocar Bruno mostrando uma espingarda.
Amarildo confessou os assassinatos junto com Jeferson Lima.
Se os amigos têm papel central no documentário, as famílias, por outro lado, ficaram ausentes na produção. Elas não participaram por terem firmado contrato com outro projeto, mas ambas, diz Sônia, manifestaram apoio à obra.
LUCAS LACERDA / Folhapress