SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Se você pode encontrar o triunfo e o desastre
e tratar da mesma forma a esses dois impostores […].”
Essas duas linhas do belo poema “Se”, de Rudyard Kipling, estão pintadas acima da entrada que dá para a quadra central de Wimbledon. A mensagem é encarada pelos tenistas antes de eles adentrarem na principal arena do icônico Grand Slam de tênis.
“Triunfo” e “desastre” saem dos versos de Kipling para nomear as duas partes que formam o documentário de quase quatro horas “O Mundo contra Boris Becker”, de Alex Gibney, diretor reconhecido por títulos como “A Inventora: à Procura de Sangue no Vale do Silício” e “Um Táxi para a Escuridão”, com o qual venceu o Oscar.
Com apenas 17 anos, Boris Becker se tornou em 1985 o tenista mais jovem a conquistar qualquer Grand Slam ao ser campeão na grama de Wimbledon -a marca foi batida por Michael Chang, em 1989, nos Estados Unidos, mas a de Becker ainda é a principal no torneio inglês.
Tratado por parte da imprensa como um sucesso da geração “baby boomer” –foi chamado em uma reportagem de “boom, boom, Becker”, daí o título original do documentário, “Boom! Boom!: The World vs. Boris Becker”–, o tenista foi o garoto-propaganda ideal de uma Alemanha às vésperas da unificação (o Muro de Berlim caiu quatro anos depois).
Por outro lado, também era um desastre na administração das finanças, fez apostas erradas, passou por divórcios com prejuízos milionários e, ainda na meia-idade, foi levado à Justiça e à prisão.
Gibney esmiúça esses dois lados com idas e vindas no tempo e farto material de arquivo comentado pelo próprio Becker, um ótimo contador de histórias, mas nem sempre preciso, como o próprio diretor adverte de tempos em tempos.
O diretor encontrou o ex-número 1 da ATP (Associação dos Tenistas Profissionais) em duas oportunidades, a primeira em 2019, quando seu protagonista já enfrentava problemas legais, e a segunda em 2022, três dias antes de sair sua sentença. Apesar de os encontros terem registro de imagem semelhante, com enquadramento idêntico e quase o mesmo figurino, é nítida a diferença do Becker de 2022, mais grisalho e muito mais tenso, por vezes beirando o desespero, com a voz levemente trêmula.
“Cheguei ao fundo do poço”, diz ele. “Não sei o que pensar. Mas vou encarar, não vou me esconder nem fugir. Vou aceitar a sentença”, completa.
Mas, para entender o tamanho do poço, Gibney volta ao início triunfante com o título aos 17 anos. E, para quem acreditava que o título foi um golpe de sorte, Becker fez de novo. Foi bicampeão em 1986, aos 18.
Becker ocupou um espaço vago para se tornar um dos principais ídolos do esporte naquela geração, que já não tinha Bjorn Borg ou Jimmy Connors para torcer e via as últimas raquetadas de John McEnroe.
O número 1 era o tcheco Ivan Lendl, tão frio nas quadras como fora delas, e com o carisma de um aspargo. Não foi tão difícil para o jovem Becker se tornar um dos principais queridinhos no coração dos torcedores.
Tanto os ganhos nas quadras como os contratos publicitários eram controlados com mão de ferro por seu treinador e empresário, o romeno com cara de mau Ion Tiriac. Mas, aos poucos, o alemão abandonou a parceria e aumentou os gastos.
Tão debatida nos dias de hoje, a saúde mental também tem espaço e cobrou seu preço. Quando o jogador pensou em parar precocemente –como seu ídolo, Borg– ou quando precisou recorrer a pílulas para controlar a ansiedade.
Na vida privada, Becker era um personagem e tanto para os tabloides alemães por se relacionar com a negra Barbara Feltus, sua primeira mulher. Ao mesmo tempo que passou a sofrer perseguições racistas, o casal também era o preferido da mídia e dos publicitários, quase um símbolo da nova Alemanha.
Suas escapadas extraconjugais estão em destaque na parte dois, “Desastre”, que também salienta os empreendimentos falidos e as amizades que renderam dissabores financeiros.
Sempre que o documentário apresenta algum problema ligado a dinheiro, Becker se defende como se não soubesse o que acontecia ou com alguma desculpa de perseguição. É assim, por exemplo, quando o fisco alemão aplica uma pesada multa por evasão. Ou quando ele encara a Justiça novamente em 2022, acusado de ocultação de patrimônio e de dívidas no Reino Unido.
O aspecto mental, tão destacado em seu jogo por ele e por adversários, não era usado com a mesma destreza nas finanças. Até o desfecho inevitável com o “match point” da Justiça.
Talvez fosse possível editar todo o material em uma única parte. A relação com Novak Djokovic, treinado por um período pelo alemão, serve apenas para fazer um link com a nova geração. Agradável, mas não imperativo.
Lembrando Kipling, ao encarar de frente o triunfo e o desastre, Becker abraçou os dois.
SANDRO MACEDO / Folhapress